sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

[CONTO] Em Cores (Ar de Evasão II)

De uns tempos para cá, Ana se sentia em piloto automático. Faz isso, faz aquilo, persegue, corre. É como se a sua vida passasse dentro de uma daquelas caixas de madeira velhas que, nos anos 50, as pessoas consideravam aparelhos de TV e que a sua avó afirmava só ver em cinza.

‘Preto e branco? Só propaganda!’

Ana levou alguns anos para entender que ela não falava dos comerciais.

Aquela era a sua lembrança mais antiga. Sentia falta da avó e daquela casa antiga, onde ainda sabia chegar. Se pudesse entrar um avião e aproveitar algumas horas! Nem em sonho poderia chegar a outro estado correndo ou de carona, em tempo. Não tinha certeza de quanto aguentaria sem dormir, o recorde havia sido de dois dias.

Mas isto passou longe do seu primeiro pensamento do dia.

“O píer, outra vez, não!”

Ainda bem que estética capilar e rotina estavam entre as suas menores preocupações. Uma onda curta e forte fez Ana embolar até a parte rasa, perto de uma das colunas de madeira. Apoiou as duas mãos para trás, na areia do fundo, enquanto a maré alta lhe roçava o queixo.

Afastou os cabelos de cima dos olhos e esfregou-os com força. Estava pronta e zangada o suficiente para sair da água e esperar horas até que a roupa secasse, quando ele a empurrou para baixo. Ana viu bolhas por todo lado e seus braços se agitaram na água, tentando alcançar um pescoço que não poderiam apertar, por maior que fosse a sua força de vontade.

Tudo começou a ficar branco, se por causa da espuma ou do seu oxigênio, que saía para um passeio, não sabia. Muitos pensamentos pipocaram em sua mente, enquanto sufocava, mas nenhum que ela pudesse expressar em palavras educadas. Aquele era um dos truques que Lucas havia aprendido recentemente: utilizar a força do ambiente. Quando Ana começou a pensar que ele talvez desejasse a sua companhia em uma forma menos corpórea, por assim dizer, a pressão sobre o seu tórax cedeu.

_Precisava fazer tanto estardalhaço? – ele bufou.

‘Gostaria de poder bater nele’, Ana pensou.

_Você tem braços bem fortes, para quem está morto há meses!

Berrou zangada, respirando com força. Era irônico que o sol e o mar tenham escolhido esta manhã para debochar de seu mau humor. O céu, sem uma nuvem, estava azul de fazer doer os olhos.  No meio da cidade, ela costumava acordar debaixo de chuva. Tão espirituoso!

_Eles estavam bem ali!

_Dá um tempo, Lucas – a garota ralhou, enquanto tentava dar um jeito nos cabelos.

Os novos suspeitos, claro! Não era exatamente o que desejava na hora do café. Lucas não parou de falar dos sujeitos desde que viu um deles comprando um jornal, dias atrás.

Após a operação com o prefeito, tiveram mais quatro experiências falhas em dois meses. Ana não mencionara as suas suspeitas sobre a primeira-dama porque o fato de ela ter saído da Taberna, no dia da morte dele, podia não ser nada; a mulher apenas saiu afobada, antes do marido. De qualquer jeito, Ana ainda não queria que Lucas sumisse, mesmo sabendo que estava sendo egoísta e que não poderia esconder aquilo para sempre.

Ele cismara com os dois sujeitos, um moreno baixo e um ruivo mais alto e magricela, que haviam aparecido na Taberna, poucos dias antes de sua passagem. Forasteiro que aparece sem uma boa razão nunca traz coisa boa na mala.

Ana viu os dois, pela primeira vez, nesta manhã de sorte em Alexandre, depois de quatro dias acordando nos lugares mais grotescos, como a saída de água embaixo da ponte Larousse.

Voltaram ao bar, na intenção de recriar a cena do crime por sua própria conta, logo cedo da manhã. Cansaram de tentar entender porque a polícia arquivara o caso. Facilitaria muito a vida dela e a morte dele.

Observaram, de trás de um ipê amarelo, do outro lado da estrada, quando o moreno baixo e seu companheiro saíam da Taberna, seguidos pelo atual administrador, Pierre.

Ana percebeu que suas roupas estavam precisando de um banho tanto quanto ela. Também registrou mentalmente que tinha acordado, pela segunda vez, no píer de Alexandre. Será que havia algum tipo de padrão? De fato, o tempo estava seco.

_Bom saber que está em boas mãos. Não me arrependo de ter deixado a minha Taberna para ele, sabe? Sempre foi bom aprendiz, o meu primogênito – Lucas suspirou orgulhoso, enquanto Pierre levantava uma vassoura e ameaçava o moreno e seu amigo, ambos visivelmente bêbados, aborrecidos e sendo expulsos do local.

_ Primogênito?

_ Primeira criação minha, oras! - ele desconversou, como sabia fazer bem - Eles só beberam cerveja, naquele dia, mas cochichavam, no canto do bar, o tempo todo. Não cheguei a atendê-los pessoalmente, ficaram para Pierre – Era incrível como Lucas se lembrava de cada pessoa que já passara por sua vida, menos do próprio assassino.

_Vamos chegar mais perto e esperar, é hora de fazer o caixa – ele sugeriu e Ana se esgueirou pelas árvores, fez a volta até os fundos do bar e agachou-se atrás da lavanderia. Essa época do ano é perfeita para se esconder na mata, porque tudo está colorido, brotando e florindo, e há cobertura suficiente.

_Quero ver como andam os negócios. E preciso de alguma cobertura.

_Ei!

Sussurrou, gesticulando feito louca, mas ele passou para dentro do bar antes que ela se levantasse. De todo jeito, ele só precisava que Ana permanecesse dentro da área que ele queria visitar, então ela se apoiou na borda da lavanderia, subiu e espiou pela janela redonda de vidros engraçados, como fizera naquela terça-feira fatídica.

A cozinha estava vazia, mas havia uma dúzia de laranjas na fruteira sobre a mesa. A sua nuca esfriou: sentiu fome e lembrou que estava chovendo naquela terça, quando acordou embaixo da lavanderia: mas o que a água tinha a ver com aquela anomalia?

_O que está fazendo? – uma voz grave a sobressaltou e ela caiu sem jeito sobre um amontoado de carne. Ele a jogou para um lado e Ana tentou fugir, arrastando-se pelo chão, mas ele a prendeu contra a parede, segurando, com força, seu pescoço. Encarou Pierre mais de perto do que desejaria.

_Eu vinha mesmo avisar que ele não estava lá dentro – Lucas informou alegre, quando reapareceu do lado de fora – o faturamento vai melhor que antes. É o negócio de uma vida!

_Pelo amor de Deus, eu estou contra a parede, aqui!

_E vai continuar até dizer o que quer ou vou chamar a polícia, moleca – Pierre berrou. Ele tinha braços realmente fortes, mas nada de cavalheiro.

_Diga que quer comida, Ana – Lucas falou sério.

_Estou com fome, moço!

Mas Pierre não afrouxou a mão.

_Diga que me conhece. Ele é de confiança – Lucas prosseguiu, menos tranquilo do que antes.

“E se ele perguntar como eu te conheço, gênio?”, Ana pensou, olhando para  o amigo, furiosa.

_Diga!

_Eu conheço o seu patrão – a voz saiu engasgada.

Nada.

_Diga que não há lugar como a casa que escolhemos – Lucas berrou impaciente.

_Nada como a casa que a gente escolhe, certo?

Pierre levou dois segundos para se decidir.

Em alguns minutos, Ana ocupava uma mesa da Taberna, com um café da manhã melhor do que peixe mal passado. Pierre se sentou na cadeira em frente a ela, depois de virar uma frigideira de ovos mexidos em um prato com pães.

_Pode começar dizendo como conheceu o meu patrão.

_Ah, foi aqui mesmo, neste bar. Ele simplesmente entrou na minha vida e, desde então, somos muito ligados.

_Eram, você diz.

_Algumas coisas, sem explicação, duram muito tempo – ela olhou para Lucas, que sorria satisfeito, de seu lugar, empoleirado e de pernas cruzadas sobre o tampo da mesa, ao lado do rapaz – ele chegou a dizer que você sempre foi um bom aprendiz. Uma pessoa confiável.

_Por que ele nunca me falou de você? – ele pôs café em uma xícara e empurrou na direção dela.

_Ninguém sabe que somos amigos.

_Eram.

_Ou isso – tomou um gole do café. Estava muito bom.

_Hum. Ele me encontrou dormindo lá atrás, perto do poço. Cresci na rua, mas ele me deu um lar e trabalho aqui. E nunca agradeci – Pierre mencionou, em voz baixa, desviando o olhar dela pela primeira vez.

_Ele sabe, pode ter certeza. A propósito, vi você expulsando aqueles dois. Clientes chatos?

_Eles só tiveram o que pediram.

Ana ergueu uma sobrancelha. Pierre permaneceu calado por alguns minutos: era moço, ainda, mas seu rosto era sério. ‘Marcado por tempo e rua’, ela imaginou. Não conseguiu adivinhar quantos anos ele tinha, nem tinha pressa de perguntar.

_Onde mora? – perguntou.

_Aqui mesmo, em Alexandre, mas a minha vida tem sido agitada desde que Lucas fez a passagem.

_Você fala esquisito.

‘E você me olha esquisito’. O pensamento de Ana lhe escorregou pela garganta e foi alojar-se, congelado, em seu estômago.

_Preciso ir – levantou de um pulo e correu até a porta dos fundos, com Lucas xingando surpreso atrás dela. Atravessou a rua ainda correndo e não parou até estar a uma boa distância, o que levou quase dez minutos e um tombo nas raízes.

_Você enlouqueceu?

_Você testou o seu amiguinho? – ela dobrou o corpo, para recuperar o fôlego e ver o estado de seu joelho direito.

_Por que eu faria isso? Ele praticamente cresceu sob as minhas vistas.

_Certo. Essa herança sua foi acertada direito ou só de boca?

_De boca, eu assobiava, Ana. Claro que procurei um advogado e deixei tudo formalizado.

Ele percebeu onde Ana queria chegar.

_Eu não posso desconfiar de um irmão, Ana!

_Não pode ou não quer?

_Se eu não tivesse as minhas obrigações, estaria virando as minhas costas ultrajadas para você neste exato momento.

_Você tem que tirar a prova.

_Não farei isto.

_Onde ele estava, naquela terça?

_Em Algodão Grande, negociando com fornecedores.

_Como pode ter certeza?

_Eu o mandei para lá!

_Você é impossível.

Ana mastigou a suspeita por algum tempo, procurando por razões para não fazer o que sabia que devia fazer. Ainda não havia uma única nuvem no céu.  Quando a tarde começou a cair, ela levantou, decidida, e voltou ao bar, sabendo que Lucas teria de ir também. Bateu decidida, à porta dos fundos.

_ As pessoas chegam à noite, Ana. Ele não abriu ainda; obviamente, deve estar em casa. E, a julgar pelo seu comportamento, vai mandar colocar gradeados em todas as janelas até amanhã.

_Onde ele mora?

_Como se eu fosse dizer!

_Onde fica a casa dele, Lucas?

Mas ele não precisou responder. Ouviram uma porta batendo forte e o som abafado vinha de dentro do estabelecimento. Ana correu para os fundos, mas a porta já estava trancada.

Ela escalou a lavanderia e entrou na cozinha pela janela de vidros engraçados, que parecia nunca estar trancada. Lucas ainda berrava e xingava, mas ninguém além dela podia ouvir, mesmo. E Ana sabia como forçá-lo a testar Pierre.

Uma vez dentro do local, destrancou a porta dos fundos, caso precisasse fugir de repente. Guardou duas das laranjas da mesa em um saco improvisado, de panos de prato. Em sua mente, não estava realmente roubando: o dono do lugar viajava com ela.

Depois vislumbrou o brilho de uma faca de cozinha sobre a pia, pegou-a e a guardou no bolso. Gritou o nome de Pierre três vezes antes de ele aparecer.

_Ah, esqueceu a sua educação embaixo da mesa? Porque eu a encontrei – ele falou com maus modos, mas bem explicado – e, pelo jeito, vou precisar colocar grades neste estabelecimento.

Lucas lançou um olhar de “Bem que eu disse” para Ana, mas ela deu de ombros.

_Quero saber onde você estava, no dia em que Lucas fez a passagem.

_Como? – O rapaz ficou paralisado por segundos e, então, deu um passo à frente, a expressão muito séria.

_Você é surdo, também?

Ele só precisou de mais três passos adiante.

_Saia.

_Não, até me dizer se foi você – ela teimou.

O rosto dele passou de vermelho a roxo; agarrou o braço de Ana, para forçar o caminho, mas ela resistiu e ele perdeu de vez a paciência. Parecia gostar de jogar pessoas contra a parede. Ela já desejava ser um daqueles clientes chatos, expulsos com vassouras, mas não podia mais fugir.

“TESTE”, ela pensou, olhando para Lucas, “Ou vai ficar sem a minha ajuda!”

A contragosto, Lucas se colocou no pequeno espaço entre o irmãozinho brutamontes e a garota. Pierre começou a engulhar e liberou a pressão sobre o pescoço dela. Em alguns segundos, o jovem estava inconsciente, no chão da Taberna; Lucas observava-o de cima e a garota inspirava forte, de seu lugar, sentada no canto da parede, onde desabara quando Pierre a largou.

_Satisfeita?

Ele estava bem aborrecido quando saiu pela porta dos fundos, ainda fechada. Ana ficou em pé de um salto, escancarou a porta de madeira vermelha e saiu atrás dele, já que, sem ela, o espectro não poderia ir muito longe. O rosto dele parecia estar brilhando mais que o normal quando alcançou o único ipê amarelo da mata fechada, do outro lado da estrada, e seguiu para dentro do bosque. ‘Será que espectros choram?’, imaginou, mas logo abstraiu a ideia.

O fim de tarde chegava, e eles caminhavam na direção do poente. Ana viu riscos rosados, como garranchos de tinta no céu, que finalmente, mostrava algumas nuvens.

Ela não podia mais negar as cores do dia: foram muitas e tomaram muitas formas, especialmente agora, que sabia o que é perder o ar três vezes, em menos de vinte e quatro horas.

‘Talvez as cores estejam sempre aqui e, no piloto automático, o que eu vejo pelo canto do olho são só uns rabiscos’, deduziu.

Ela não sorria de verdade quando pegou uma das laranjas afanadas e começou a descascá-la com a faca.

É que a fruta era de um tom laranja bem mais vivo do que ela lembrava de ter visto, na fruteira sobre a mesa do bar.



***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

 

COMENTÁRIOS ANTERIORES


Beronique disse... Tô gostando cada vez mais disso aqui, é uma idéia realmente surpreendente a desta história. Se o que ela tinha pela mulher do prefeito é apenas uma suspeita, agora eu fico mesmo curiosa pelo desvendar do assassino. Pena que quando isso acontecer, não será apenas a Ana quem perderá o Lucas, mas também nós. Mto bom! :-) 12 de fevereiro de 2011 09:20

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