sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

[CONTO] Ar de Evasão

Era uma vez? Não, é a quarta vez, nesta semana.

Pelo menos, hoje acordei neste beco. Suponho que a chuva e a lama sejam um mimo; abrir os olhos sob o píer, na maré alta, ontem, foi dureza. Nem quero pensar no subsolo, ou pior, nas estações de tratamento de água em Paris.

A aurora delineava as formas geométricas das casas do centro de Alexandre. O som da chuva batendo nas calhas acima era reconfortante para o meu torcicolo, mas inspirei apenas dois segundos de alívio antes que aquele espectro irritante surgisse ao meu lado.

_Ana, não pode ir tão longe.

_Se pudesse controlar, já estaria livre de você – resmunguei.

_Física improvável básica, minha cara – murmurou empolado, como se fosse o Cristiano Ronaldo, finalmente levando Portugal a uma final de Copa. Fechei os olhos, impaciente, deixando sua voz apenas passar.

_É a última pessoa que vi antes da passagem, é natural que eu esteja preso a você até encontrarmos quem me tomou do corpo. Então, vou ficar com essa pessoa até o fim da punição e nós não nos veremos mais – explicou quando nos conhecemos, há sete meses, e consegue repetir isso, todos os dias, como se fosse a manchete do jornal de hoje.

_Acordando todo dia em um lugar diferente, você dificulta um pouco as coisas, Ana. Mas isto não me incomoda: você tem uma bela cútis, especialmente, a essa hora da manhã. E, se me permite o comentário, aquele carcamano não era para você, mesmo.

_Super.

Sem casa, dinheiro ou a mínima auto-estima. Ainda tento me acostumar com a ideia de que nunca sei onde vou acordar no dia seguinte, o que começou como uma brincadeira não muito inocente, com aquele livro velho que vovó escondia no sótão da casa grande.

Já fiz observações, cheguei a passar duas noites em vigília, sem que nada acontecesse. O problema é quando apago: simplesmente, acordo a quilômetros de distância. Abandonei escola e trabalho, cansada de tentar voltar para a cidade em tempo. E quanto ao paradeiro da minha família, não tenho ideia, esqueci das feições deles e do caminho de casa. Como se o embrulho fosse pequeno, ganhei de brinde um espectro em meu encalço porque acordei no lugar errado, em péssima hora.

Tentei fugir. Também tinha um problema e tanto, relutei por uma semana porque não era exatamente uma situação divertida, mas alguém devia ceder e eu era a única cansada. Ele precisava tomar um rumo e eu, descansar em paz.

_Ainda não tem ideia de quem te roubou do corpo?

_Teria, se você não tivesse metido o nariz na janela da Taberna, no dia da minha passagem. Estaria perseguindo o bandido e não a sua cútis, pelo estado. Tem noção de como é difícil conseguir localizações com espectros? É fácil encontrá-los em prisões e albergues, mas fazê-los falar, é outra história. Se você fosse normal, seria muito mais fácil.

Isso vinha de alguém que podia atravessar uma parede e sair inteiro, do outro lado.

_O que quer que eu faça, Lucas?

_Primeiro, diga-me por que cargas d’água você foi à minha Taberna, na manhã daquela terça?

_Acordei sob a lavanderia.

_E você não aceita a minha pista mais consistente. É ultrajante!

_Não, é absurda! E vou raciocinar melhor depois de comer alguma coisa.

_Pretende comer o quê, se não tem um tostão? Terra?

Segurei a língua porque Alexandre oferecia alternativas: a questão não é o que você tem, mas quem você conhece, e isto me fez cruzar a cidade. Uma hora depois, sentada à porta dos fundos do Poncho bar, sorri para Nonô, um atendente que se dizia grato porque consegui salvar seu emprego; certa vez, acordei sob a mesa de seu chefe, interrompendo uma briga entre eles. Nunca pedi maiores explicações, ficava feliz por estar em Alexandre e comer de graça.

À minha frente, Lucas observava com inveja os dois sanduíches que eu devorava. Andava quase tão abstêmia quanto ele e não sabia quando teria outra refeição, ou qual seria a procedência dela. Eu não estava triste por não ter um lar, ou o cara que desejei, ou porque podia ver as manchas na parede atrás da minha única companhia constante e translúcida.

Tampouco considerava essa amizade anormal: era bom ter alguém com quem conversar, mesmo que fosse nessas condições, e sabendo que era passageiro. A parte difícil foi dissuadi-lo de sua megalomania.

_Então, o elefante no beco – ele suspirou.

_Sinto muito, mas não creio que o prefeito matou você – falei, ainda mastigando o pão. Cobri a boca com a mão livre.

_Economize palavras.

Lucas ficava realmente sensível com a questão da morte prematura. Aos 31, você prefere estar divertindo-se, trabalhando; não morrendo. Ele gostava de pensar que estava tirando férias da vida, enquanto bancava o justiceiro.

_Então – bati as mãos, para me livrar dos farelos – ele não dormiu em casa, deu uma desculpa qualquer à esposa sobre uma reunião fora da cidade e escondeu-se na Taberna durante a noite, saindo de lá pouco depois do amanhecer. Não nego que vi o cidadão, mas isto não significa muita coisa.

Até onde podia lembrar, Lucas sempre tivera uma boa relação com o prefeito. Até fazia vista grossa quando o homem ia ao seu estabelecimento acompanhado de uma moça diferente, por vez. A Taberna ficava fora da cidade e do alcance de olhares curiosos. O prefeito tinha, no mínimo, uma dívida para com ele.

Por três meses, perseguimos figuras do passado de Lucas, qualquer pessoa que pudesse ter razões para querer vê-lo morto. Não tinha inimigos ou dívidas, mas chegamos a alguns nomes, que iam de ex-namoradas a funcionários.

Fizemos rondas e abordagens e, quando parecia que finalmente havíamos encontrado um culpado, este era reprovado no último teste: Lucas encarava o suspeito e continuava ali. O saldo da busca foram seis pessoas inconscientes, um dos efeitos do processo. Uma experiência como aquela devia ser forte, já que o motivo desse tipo de ligação era.

Repassamos a história das amantes e possíveis conspirações políticas, mas sempre voltávamos ao mesmo ponto: a única pessoa que poderia relatar o crime estava morta, enterrada e com a memória bloqueada porque vira outra pessoa, antes de cerrar os olhos.

Resolvi apoiar Lucas na suspeita sobre o prefeito. Levei muito tempo até acordar em Alexandre novamente e aproveitaria o que tinha em mãos, para me livrar logo do fardo. Após uma breve ronda pelo centro da cidade, descobrimos que o homem presidiria a inauguração de uma nova unidade de combate ao câncer no bairro de Terra Baixa, no fim da manhã, e partimos.

Dias atrás, fiz um pequeno estoque de roupas no abrigo que visito quando acordo na cidade. Intimamente, agradeci pelas pessoas que empinam o nariz para certas doações. E os tênis que Lucas fizera cair da varanda de um prédio, no centro – acidentalmente, segundo ele – ajudaram na hora de correr.

Já havia muita gente em Terra Baixa, quando chegamos, mas nem sinal do prefeito. Pelo que pude captar das conversas, ele participaria da inauguração e partiria para a capital, levando algum tipo de proposta ao Congresso. O problema ali era o número de testemunhas. Sempre por perto, Lucas também observava. A multidão aumentava e ele não se sentiu confortável naquele meio, porque identificou alguns espectros desagradáveis. Decidimos esperar pelo prefeito na estrada. Corri novamente, tentando não chamar atenção.

Lá, entre os arbustos, observamos a estrada durante a tarde. Só havia uma saída para o aeroporto e ali, eu ficaria bem escondida. Montamos um plano, que tinha furos enormes, mas era o melhor que tínhamos e eu estava disposta a ajudar como fosse.

Muitos carros passaram antes do importado amarelo, mas ele finalmente veio. Fiquei de pé e sorri para Lucas.

_Nunca?

_Agora. Foi bom trabalhar com você, Ana. Quem sabe, um dia?

_Um dia, Lucas.

Ele sorriu de um jeito assustador, desfigurado. Não sei dizer o que ele estava sentindo ou mesmo se poderia sentir algo. Parte de mim não queria que aquilo acabasse. Quem se importa com chegar, quando o caminho até lá foi, se não divertido, memorável?

Ciente do fracasso a caminho, saltei para a estrada. Os pneus cantaram, a certa distância e fechei os olhos. Ouvi quando o motorista bateu a porta do carro com força e veio na minha direção.

_Tente chegar nele, agora – sussurrei para Lucas, que só podia aproximar-se dos suspeitos se eu estivesse por perto. Com uma pirueta, fingi um desmaio. O que os anos na rua não ensinam, a gente inventa.

Ouvi outra porta do carro abrindo. Não movi um músculo, sabendo o que viria a seguir. Antes de perderem os sentidos, as pessoas testadas por um espectro costumam engulhar. Ouvi três engulhos e um baque, provavelmente o do motorista, quando apagou fora do carro.

_Eles não matariam uma vaca – a voz de Lucas me surpreendeu entre as pálpebras, segundos depois.

_Uma mosca.

_Nenhum dos dois.

Em uma conferência rápida, contabilizei três inconscientes e um espectro ainda ali, o que não era surpresa. Com sorte, eles acordariam em poucos minutos, vagamente cientes do ocorrido e de uma maluca que desmaiara pela mesma razão misteriosa. Tão rápido quanto viemos, enveredamos de volta à cidade por entre as árvores.

Voltei para o abrigo, naquela noite, o que evitava, porque é tipo de coisa você não encara enquanto pode escapar. Mas era bom parar de perseguir gente inocente e me esconder de todo o resto, de vez em quando. Revigorante.

De alguma forma, enquanto observava as infiltrações nas paredes e os colchonetes ocupados pelos demais desabrigados, consegui sentir-me em casa, quase sozinha e feliz. Lucas continuava ali.

_ Que bom que deu tudo errado, de novo – sussurrei. Se as coisas fossem menos complicadas e eu tivesse um lar de verdade, seria uma chatice.

_ Quem disse que a vida é fácil? Se fosse, não estaríamos aqui, para consertar as coisas.

Ele se recostou ali, ao meu lado.

_ Tecnicamente, você não está aqui, Lucas – desabei sobre o meu colchonete e puxei uma coberta. Estava realmente cansada.

_ Vou estar, quando acordar amanhã.

_ Sei o que quer dizer.

Fechei os olhos sorrindo, tentando afastar da mente todas as lembranças, inclusive a da primeira-dama apressada, deixando A Taberna pela porta dos fundos, naquela manhã de terça, sete meses atrás.



***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.
A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

COMENTÁRIOS ANTERIORES

- Elton disse...Mais uma obra prima dessa ilustre autora ... que dentro em breve será conhecida internacionalmente por seus contos, historias e cronicas. Aguardo que vc escreva a continuação deste texto. bjos 7 de setembro de 2010 13:10 
 
- Guto Fernandes disse...Adoreiii seu conto. Infelizmente ainda só li o primeiro mas a historia me envolveu mtoooo... Amanha já tenho minha leitura para antes de começar a escrever CPdM ou O Sétimo Dia...Parabéns, minha querida amiga! Só uma duvida: aquela parte da testemunha me explique o porque depois?? Please >< rsrs 14 de dezembro de 2010 23:22

THIS GOMEZ disse: Lucas foi morto dentro de seu bar, o "Taberna". Do lado de fora, Ana acordou justamente naquela hora e espiou pela janela quando viu a Primeira Dama saindo apressada do lugar. Pela janela, Ana presenciou os últimos segundos de vida de Lucas e o espectro dele ficou "preso" a ela, porque foi a última pessoa que seus olhos captaram, antes de morrer. Criei esta lenda, propondo que alguns assassinos, estando encarcerados ou não, sofrem consequências inexplicáveis por terem tirado a vida de alguém. Alguns enlouquecem. Outros podem até tentar viver como se nada tivesse acontecido. Mas nenhum deles realmente esquece do que fez. O espectro se prende à última pessoa que realmente VIU e a atormenta até que pague pelo que fez. Mas pode acontecer de ela ver outra pessoa, como foi o caso de Ana e sua pouca sorte.
- Rafael Sales disse... This que conto maravilhoso!!! A lenda de um espectro se "ligar" a última pessoa que ele vê antes de partir simplesmente é fantástica. Parabéns pelo seu trabalho e criatividade. Te desejo o melhor e espero muito ver Ar de Evasão não só nesse blog. Quero ele (completo)publicado e quem sabe até adaptado para virar filme XD.Um grande beijo 13 de janeiro de 2011 20:51
 
- Beronique disse... Adorei esse conto, é muito inusitado e surpreendente, tem uma aura ativa e ligeira, esse final em que ela confessa ter visto a pessoa que saiu da taberna apos a morte de Lucas, mas não revela (acredito) por não querer ficar sozinha em sua vida que é tão estranha qto a dele, hmmm, tem um ar (mesmo que insolito) de romance. Mto bom! 10 de fevereiro de 2011 21:21

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