sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

[POEMA] Se amanhã eu não acordar

Não chorem por mim porque o alívio chegou.
Não muito.

Doem todas as minhas roupas e órgãos bons.
Guardem as fotos em que eu sorri e descartem aquelas em que eu tentei.
Fotografem tudo que eu fotografaria.
Postem todas as minhas cartas pendentes,
- A última lembrança, às vezes, vale mais que todas - 

Publiquem meus livros e contos inacabados
Não derramem meu perfume favorito
Não mudem a estação quando a minha música tocar
Meu material escolar, aos meus irmãos
As bijuterias, a quem interessar.

Destruam meus velhos óculos e lembranças que não quero que guardem
Releiam meus livros favoritos
Amem aqueles que amei
Sorriam, quando souberem que eu sorriria
Não enruguem o rosto, porque eu não gostaria.

Não procurem esquecer
Mas, de uma forma boa,
Lembrem se fui importante para vocês

Façam algo diferente, nesse dia
Não guardem rancor do único culpado,
Que nem culpa tem.

É chegado o tempo e a vida é a ordem,
Ora aqui, ora acolá.
Vida a ser vivida ou abandonada,
Vida que sopra, eleva,
Vida que ficará ali suspensa,
Se amanhã eu não acordar.


* Originalmente postado no Canto e Conto, em 3/11/10, foi o segundo poema mais lido do blog, perdendo apenas para Os Pássaros.


COMENTÁRIOS ANTERIORES



disse...Guria... me arrepiei toda lendo! É você mesma que escreve??? Lindo *-*
Parabéns!!! ps: obrigada por recomendar o Guria ;) 5 de dezembro de 2010 20:08

Gabriela disse... Muito lindo, amiga! Você escreve muito bem mesmo, parabéns! 23 de dezembro de 2010 22:04

[POEMA] Os Pássaros

Ah, como invejo os pássaros.
Asas que descobrem o mundo em círculos perfeitos.
Em formações ou bandos solitários cruzando ares.
Incansáveis.
Como desejo a sina dos insaciáveis
Desbravadores de terras, horizontes e mares
Lépidos viajantes, de paixão e liberdade feitos
Ah, como invejo os pássaros.

Algemas e grilhões, deixei para trás
Esvoaçando o azul em trilhas de plumas
Carregando ao vento as sementes do passado
E do futuro.
Por um breve instante, abrir mão de tudo
Minhas lágrimas, somar ao mar, à espuma
Algemas e grilhões, deixei para trás.

O lar é onde a vista alcança
Não peço muito mais,
Feliz.
Vou descansar no cais,
À sombra de um barco e de esperança.

Vou ao encontro de outra aventura, em breve.
Migro.
Ao encontro de um sopro que minha alma leve.

Em paz.


* Originalmente postado em 20/11/11, no blog Canto e Conto, foi o poema com o maior número de visualizações da história do blog.



COMENTÁRIOS ANTERIORES

Caíque Pereira disse... Nossa This, que poema lindo e profundo, não sabia que escrevia tão bem e nunca tinha visto um poema seu aqui, gostei muito mesmo. Eu já escrevi poemas e até ganhar um concurso no meu outro colégio que tem a cada dois anos, mas parei e me dediquei a escrever livros, e se Deus quiser, irei publicá-los um dia. Apoio sem hesitar se você quiser publicar um livro de poemas, eu quero, gostei muito da sua interpretação como eu-lírico do texto, mas lembre-se, não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver. Mas se quiser sonhar, sonhar que está voando, leia um livro bem legal que ele vai te levar às alturas. Beijão! ;* Livros, Letras e Metas   21 de julho de 2011 13:07

[CONTO] Paz e Regresso (Ar de Evasão V)

...Paz.

Ana ouviu uma voz abafada ecoar em algum ponto sobre a sua cabeça e sentiu um ardor desconfortável em seu rosto.

A chuva desabava nas ruas, quando ela emergiu ofegando fortemente e cuspindo água barrenta. O tempo parecia ter perdido um compasso, ou ela estava zonza por ter ficado tanto tempo sob a água. A expressão em seu rosto mudara: seus traços, antes suaves e de ar espantado, agora estavam duros, amargurados. Carregados de culpa.

- Não – ela fechou os olhos – Não, não.

Lembranças invadiam a sua mente como flechas em fogo – ela era um alvo atingido pelo próprio cérebro, com sérias dúvidas quanto a poder caminhar. Sacudiu a cabeça diversas vezes, na tentativa frustrada de afastar aquela torrente de memórias – um acidente, uma criança... o seu menino. Era ele que Ana viera buscar, ali.

Gritou, mas não ouviu a própria voz.

Viu-o novamente, encarando-a de longe, sorrindo – o menino de olhos cor de mel. Ana disparou em direção ao morro do fim da rua. Tinha a impressão de ver tudo ao redor através de uma cortina cinzenta e nebulosa, enquanto dava passos firmes, chapinhando água com os pés. Decidindo que não havia tempo a perder, correu, como se a sua vida dependesse disso.

- Ana, volte!

A voz grave de Lucas chamou uma última vez e soava preocupada: aparentemente, ele não poderia segui-la. Ela ouviu o murmúrio novamente, desta vez formando uma palavra discernível: Paz. Ela fez um giro completo com o corpo, procurando a origem do som, e percebeu que vinha do garoto, que a observava de um ponto adiante. Ela já sabia o que fazer, sabia que precisava seguir sozinha.

E a direção era morro acima, onde ele fora jogado numa vala, como indigente.

Até chegar ao fim da rua, aonde se dirigia, Ana viu os sinais da enchente: bombeiros ajudavam crianças e idosos e atravessar a água, pessoas gritavam desesperadas por parentes. Todos estavam muito ocupados com suas próprias tragédias para reparar em uma moça baixinha que passava desembalada, sem cuidar dos possíveis buracos escondidos sob o tapete de água, que alcançava seus joelhos. Um cachorro pequenino cruzava a água diante dela, aqui e ali afundando na água lamacenta.

Parte da rua estava bloqueada por cordames, que ligavam uma casa a outra. Dois carros estavam empilhados um sobre o outro e a água começava a subir ali, também, embora Ana já tivesse deixado a parte baixa da cidade. Uma lama espessa atrasou seu ritmo, mas ela alcançou o sopé do morro em alguns minutos. Seus olhos miravam o fim da rua, fixos na edificação do topo, onde o menino a aguardava. O prédio estava visivelmente em ruínas e a ponto de desabar.

Outra equipe de bombeiros, à sua direita, ajudava uma família inteira a escapar, agarrados nos cordames. Ana seguiu pela esquerda, onde havia árvores ainda de pé, e   começou a escalar, de tronco em tronco. Como os caules remanescentes estavam juntos, não foi preciso muito esforço.

Parte do morro havia desabado e muitas árvores foram arrancadas e arrastadas junto com o barro e os casebres, como Ana verificou. Ela levou cerca de meia hora para atingir o topo do morro e, uma vez parada à beira do penhasco instável, parou, contemplando o prédio que o encimava.

Naquela parede, pichada em tinta vermelha, viu o que procurava - uma palavra descascando da murada interna do enorme casarão imperial, Paz, visível apenas porque parte do muro externo havia sido levado pelo desabamento, deixando um estreito vão entre a parede e o abismo. E era por aquela fenda que ela precisava passar, se não quisesse dar a volta na murada, de quase cinquenta metros de extensão.

Um cão de rua, vindo não se sabe de onde, farejou o terreno perto da palavra descascada e começou a escavar. Ana não hesitou antes de agarrar-se a pedaços curtos de vigas, que se desprendiam do muro. Segurando-se firmemente, ela passou para o pátio do único casarão imperial de Alexandre, seu prédio mais antigo, onde o imperador D. Pedro II certa vez, se hospedara, quando de passagem pela cidade. Os cidadãos ainda davam uma estúpida importância ao fato e a casa, não estivesse em ruínas e a ponto de desabar, ainda seria um sítio histórico.

Até as últimas chuvas, toda a sua imponência histórica servira de tela para pichadores. Mas aquela palavra pichada, em especial, Ana desejava que nunca tivesse sido feita.  Tornava tudo real.

Sob a letra A, o menino de olhos cor de mel, que a esperava recostado à parede, se dissolveu no ar. Abandonando toda a gravidade, Ana correu até o local, afugentou o cachorro sacudindo as mãos e continuou o trabalho do animal, com as mãos nuas. Seus olhos estavam em fogo, como o topo de sua cabeça.

O trabalho foi facilitado pela água da chuva, que revolvera o terreno e umedecera a barreira. Ela cavou freneticamente e sem cessar até que alcançou um objeto sólido, uma caixa de madeira empenada. Parou para secar o rosto, que se manchou de barro, e já se abaixava para continuar escavando quando uma mão apertou firmemente o seu ombro.

- Ana, já chega. Não pode ir tão longe – era Lucas.

- Não!

 Ela se soltou para tentar escavar novamente, mas enquanto desviara a sua atenção por segundos, o cenário inteiro mudou. Ela já não estava ajoelhada sobre a lama, atrás do velho casarão imperial. Trajava um vestido florido, semelhante ao que recebera de Lucas, para o casamento. Sentada sobre grama verde e seca, inalando o inconfundível perfume de lírios, Ana vislumbrou uma pequena lápide de mármore. Esta exibia a foto carcomida de um menino de olhos cor de mel e duas palavras em letras pretas carcomidas: Pierre Fortes.

- Tente o quanto quiser, não pode mudar o passado. E ele não vai voltar.

- Não, Lucas.

- Ana, volte, agora.

Ela travou o maxilar e estas últimas palavras ecoaram nas paredes de seu cérebro como ondas pesadas. Sua cabeça começou a ferver: mãos em fogo comprimiam seu rosto e Ana sentiu não apenas seu corpo sacudir, mas algo sendo escavado em seu peito. Sem oferecer resistência, sentiu-se puxada pela cabeça, pela força do vento, através de um longo canal mal iluminado que ficava mais claro à medida em que ela avançava; disparou em uma velocidade vertiginosa e seu corpo congelou, segundo a segundo. Intimamente, teve a sensação familiar da iminência de uma batida e fechou os olhos com força.

- Pode abrir os olhos, agora – a voz de Lucas denotava desespero.

- Lucas, o que foi isso? – a voz da avó de Ana se sobrepôs a um estranho barulho de sucção.

- Não sei, por um momento, pensei que havia algo errado. Amélia, ligue para a primeira dama e avise que ela acordou, por favor.

Afastando as pálpebras, Ana se descobriu presa em um enorme cilindro de vidro, sem uma peça de roupa. Tubos se desligavam dos seus braços e de sua cabeça, e o nível do líquido amarelado em que estava submersa baixou gradativamente. Seu corpo cedeu ao próprio peso ao passo que a substância chegava ao chão. Chegando ao piso metálico e gelado, ela viu sua corrente de ouro velho quase ser levada pelos tubos de água, mas conseguiu apará-la pelo pingente.

Um Lucas envelhecido e de bigodes grisalhos a encarou, enquanto abria uma porta no cilindro, passava um braço por sua cintura e a ajudava a levantar. Ela percebeu que deixava a correntinha para trás, mas poderia voltar para pegá-la mais tarde. Os dois caminharam aos tropeços na direção da porta e Ana arregalou os olhos quando viu seu reflexo no cilindro de vidro. Quem era aquela pessoa que a mirava de volta?

Mais tarde, Lucas e Ana passaram muito tempo sozinhos num quarto improvisado, no andar superior. Havia poucas roupas no armário e algumas malas no chão - se estavam sendo feitas ou desfeitas, não era possível dizer.

Ana se recostara a uma cadeira de espaldar alto, menos assombrada com a aliança em sua mão esquerda do que com o espelho na parede, de onde uma caveira a espreitava de volta, ostentando olhos fundos de culpa. Pelo reflexo, ela mirou o abajur que descansava sobre um criado-mudo, próximo a porta. Levantou disposta a agarrá-lo e lançá-lo longe, mas foi ao chão instantaneamente. Lucas se aproximou e acompanhou-a de volta à cadeira.

- Tenha calma. Você sabe que ainda vai demorar até a sua coordenação voltar ao normal.

- Falhei outra vez, Lucas. Eu me perdi de novo.

- Você não pode falhar se o seu objetivo é impossível de atingir, minha querida. Aceite.

- Eu quero o meu filho de volta – ela afundou a cabeça na camisa dele.

A avó de Ana, dona Judith, bateu na porta aberta e foi entrando. Ela se movia lentamente, apoiada em uma bengala por um braço, trazendo um livro grosso com a outra mão.

- A primeira-dama não ficou nada feliz com as notícias. Ela não quer patrocinar mais nada em que você ponha a mão, Lucas. E olha que ela tem prazer em se livrar do dinheiro do marido. Avisei, quando procuraram a minha ajuda, na primeira vez: não há nada que se possa fazer para trazê-lo de volta. O máximo que podemos ver é até onde ele teria chegado, não fosse o acidente. Mas você é teimosa, filha – A velha sentou na cadeira de balanço ao lado da cama e jogou o livro sobre os lençóis.

- Eu me lembro deste livro – Ana voltou os olhos escuros para o tomo.

- Claro que sim, é o que usamos para desligar a sua consciência há anos, nesta experiência maluca, não é? Eu sempre digo, a ciência é terra de gênios, mas não funcionaria sem o manto dos esclarecidos e isto, a minha magia pode fornecer – ela deu um tapinha carinhoso na capa do livro – O que viu no futuro dele, filha?

- Um momento - Lucas levantou, foi até o criado-mudo e pressionou um botão em uma caixa acústica, que registrou todo o depoimento de Ana, enquanto ela narrava toda a experiência, desde que se viu acordando em um beco escuro.

- Pierre adorava aquele playground... – Lucas suspirou, mas logo retomou o foco – Curioso, o seu cérebro projetou pessoas e lugares que nunca conhecemos. Querida, quem seria o tal Cristiano Ronaldo?

- Não sei, era um nome em destaque nos jornais futuros. Alguma coisa a ver com desportes.

- Não é nada com quem eu precise me preocupar, é?

- Acredito que não, mas Lucas - ela secou os olhos com a manga do vestido - Você estava morto.

- E você, turrona como sempre - ele usou um dedo para levar uma mecha solta do cabelo dela para trás de sua orelha - Levei uma semana para convencê-la a seguir minhas indicações! Mas era a única forma de ficar perto de você e tentar guiá-la. No entanto, só pude permanecer no primeiro nível de consciência. O que acontecia quando ia mais fundo?

- Não lembro bem. Isso importa?

- Sim, porque foi muito difícil convencê-la a voltar – ele pôs um joelho no chão, e mirou os olhos dela – Ana, não importa quão longe essa parafernália pode levar sua mente. O acidente com nosso filho foi parte imprudência e parte fatalidade.

- Ele não teria sido arrastado pela correnteza se eu não o tivesse levado de volta para casa comigo, sem ajuda! – ela explodiu, revirando na cadeira.

- Já fomos longe demais com isso, precisamos voltar para casa e esquecer este laboratório. Amélia, está na hora, vamos embora daqui – ele lançou um olhar significativo para a mulher e, com alguma dificuldade, ergueu Ana pelos braços. Levou-a para o carro, estacionado em frente à porta, e foram seguidos pela mulher.

Amélia assumiu o volante enquanto Lucas voltava ao interior do prédio, ressurgindo em instantes.

- O que está fazendo?

- O que eu deveria ter feito há anos. Amélia, vai!

Surpreendentemente, aquela senhora arrancou com o carro com a destreza de um piloto de corrida, alcançando 80 km/h em instantes.

- Por que a pressa...

A pergunta de Ana foi interrompida por um som ensurdecedor. Virando-se no banco, viu que deixavam para trás uma enorme coluna de fumaça, fragmentos voadores de uma casa implodida, que em breve seria  reduzida a vigas de concreto e um passado morto.

- Você não fez isso!

- E faria de novo, se fosse estúpido o bastante para reconstruir este circo!

Ignorando as reclamações e injúrias proferidas por ela, Lucas indicou o caminho a Amélia, que enveredou por um trajeto arborizado e parou em frente ao portão de um cemitério. Lucas fez a volta no carro e puxou Ana por um braço, sem muita delicadeza.

Caminharam lentamente, desviando de inúmeras lápides e cruzes no chão bem cuidado. Pararam em frente ao mesmo túmulo que Ana vira pouco antes de acordar. Ela sentou na grama e observou as palavras em letras pretas descascadas.

- Despeça-se dele agora, Ana. Ou de mim – a voz de Lucas era grave e furiosa.

- O quê? – ela se voltou ao marido, alarmada.

- Não vamos viver essa maluquice e usar nossos dons do modo errado! Tampouco quero que se mate antes do tempo por algo que não tem mais volta. Veja onde está o seu filho! Todos sentimos falta dele, mas conseguimos superar. Ele, com certeza já perdoou a mãe. Faça o mesmo!

- Lucas, não está sendo muito radical? – Amélia sussurrou para o homem, depois de puxá-lo para um lado.

- O fantasma que ela vê é a culpa, não Pierre, Amélia. Isto pode ser eliminado e será, de um jeito ou de outro.

A discussão continuou e nenhum dos dois pareceu se dar conta do menino de olhos cor de mel que se postava do lado de Ana, sentado na grama, com um sorriso sem tamanho no rosto, olhando de Lucas para a jovem mãe de olhos fundos.

- Eu ouviria o meu pai.

- Não deveria ter levado você ao hospital comigo. Eu deveria saber!

- Não pode mudar isso, agora.

- Você vai ficar bem sem mim?

- Pode ser.

- Aonde vai, agora?

- Não sei, mas é bom. Não se preocupa.

Ana suspirou.

- Por que a sua versão adulta tentava me esganar sempre que nos encontrávamos?

- Não era eu, mãe. Era você.

Ela arregalou os olhos, uma dúvida se desanuviando do seu olhar.

- Você não me culpa, então?

- Não – ele sorriu – acho que não. Tem muita coisa, aqui, não penso muito no que aconteceu.

Depois de algum tempo refletindo, ela assentiu com a cabeça.

- Não volto mais aqui, certo?

- Tudo bem. A gente se vê outro dia.

Ana se ergueu sozinha e caminhou lentamente até onde Lucas e sua avó ainda discutiam.  Ambos olharam espantados para a recuperação dela, mais rápida do que das outras vezes. Sem dizer nada ou olhar para trás, Ana agarrou a mão do marido e refez o caminho até o carro. Os três seguiram para a casa no centro da cidade, que já começava a se iluminar com as luzes dos postes das ruas, causando um efeito magnífico para quem via do alto da colina.

- Fez uma boa escolha, meu bem – sorrindo, Lucas levou a mão da esposa aos lábios, e beijou-a delicadamente. Amélia observou os dois pelo retrovisor por segundos, antes de devolver sua atenção à estrada.

- Não vou deixar que minha consciência me atormente mais - em um gesto involuntário, Ana passou a outra mão pelo pescoço e sentiu que faltava algo, mas não deu importância.

O laboratório de Lucas e Amélia estava localizado tão longe da cidade que, antes de alguém descobrir a implosão, talvez as chuvas frequentes da região já tivessem lavado todo o território. E, como se entendesse sua deixa, a água começou a despencar do céu sobre os destroços - ela nunca dava trégua.

Mas a água empoçada da chuva não foi a única coisa a se remexer naquele lugar.

Do meio dos escombros e cinzas, uma forma sólida se ergueu, no mesmo ponto onde Ana ficara presa dentro de um grande cilindro de metal. O rosto da figura era jovem, devia ter por volta de vinte anos, mas a sua expressão séria lhe dava um ar austero e envelhecido. Ele tinha braços fortes e, nos olhos, grossas linhas negras contornavam as íris. Íris cor de mel.

Em uma das mãos, ele segurava firmemente uma corrente de ouro envelhecido, também resgatada dos entulhos. Abrindo o pingente, um homem grisalho de expressão zombeteira e um menino com olhos idênticos aos seus sorriam para ele. Na parte de trás do pingente, um nome estava gravado em uma caligrafia rebuscada, Ana Marie Fortes.

Exatamente o nome que estava procurando.


***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

[CONTO] Babélico (Ar de Evasão IV)

_ Você não bateu forte demais?

_ Ela vai sobreviver.

_ Eu estava pensando: a gente pode chamar a TV.

Pancadas ribombavam no teto.

_ E perder essa chance? Quando as pessoas souberem, vão jogar essa aí no zoológico.

As pancadas ficaram mais fortes e rápidas.

_ Pode ser coisa ruim, Marcão.

_ E daí? Se ela consegue entrar e sair de qualquer lugar, eu quero...

O som de um trovão abafou o fim da conversa.

Dezembro ia avançado, mas fazia frio.

Os sons de vozes masculinas e da chuva no telhado misturavam-se harmoniosamente a caminho dos ouvidos de Ana, que acabara de acordar, mas não abrira os olhos. Seu corpo estava pesado, sentia os pulsos e tornozelos doloridos, e algo pressionava os seus lábios.

_ Não abra os olhos e não se mova – ouviu a voz de Lucas em algum ponto acima de sua cabeça.

Ouvindo o retinir de metais à sua esquerda, porém, Ana não resistiu e afastou as pálpebras inchadas. Aos poucos, os contornos anuviados de duas figuras entraram em foco: os homens usavam jalecos verdes e não pareciam preocupados em esconder os rostos, de traços familiares. De onde os conhecia?

Ana só conseguia mexer a cabeça para os lados. Estava em uma sala cinzenta, pequena e aziaga. Ali, havia apenas a superfície plana onde a deitaram, uma janelinha de metal cuja altura jamais alcançaria, e uma longa estante cinza, com gavetas rotuladas a perder de vista. Vislumbrou a cabeça de um cadáver sobre uma das gavetas que estava sendo fechada; isso explicava o som metálico. Não parecia o lugar ideal para receber amigos.

As lembranças voltaram com o vento. Sim, ela acordara mais cedo em algum lugar macio, debaixo de chuva, mas fora nocauteada por um daqueles dois, não sabia dizer qual. Não perdera totalmente os sentidos, mas as suas reações se resumiram a gemidos de dor, durante o tempo em que a carregaram até aquele lugar. Agora, estava plenamente desperta e começou a debater-se sobre a maca, urrando.

_ Acordou – o homem ruivo forçou a mandíbula de Ana para baixo e o trapo sujo que cobria a sua boca encaixou-se nela. O moreno baixo aproximou-se pelo outro lado e aplicou um líquido transparente na veia da garota: em alguns segundos, as imagens começaram a ficar borradas e confusas, fazendo-a sentir como se o tempo tivesse desacelerado. Só então, o ruivo desatou a mordaça.

_ Agora você vai explicar como fez aquilo – o moreno começou.

_ Quê? – ela balbuciou, virando a cabeça para o lado direito.

_ Flutuar e depois cair no chão.

“Lucas, o que ainda estou fazendo aqui?”, ela pensou, mirando o amigo, que se postara entre os dois homens, à cabeceira da maca.

_ Ah, agora você me escuta. Quero saber o que eles querem de você e depois saímos.

“Eles vão me machucar?”

_ Não se atenha a bobagens, Ana! Vejamos o que querem; siga o plano parlamentar.

_ Ah – ela balbuciou, lembrando que haviam combinado algumas palavras-chave, para o caso de reações de urgência; o plano parlamentar pressupunha agir como um político comum. Ana tornou a olhar para o moreno – Não sei do que está falando.

_ Eu esperei com Luís do lado de fora do bar, pra dar uma surra naquele pateta grandalhão. E de repente, você estava lá, do nosso lado. Caindo do ar!

_ E?

_ A gente vigiava o lugar desde ontem. Vi você entrar lá com ele, mas não sair. Esse aqui não me deixa mentir – o moreno apontou para Luís – Eu diria que o seu segredo está seguro comigo, mas – ele sorriu, exibindo dentes amarelados – essa frase já tem muitos donos e a gente pode usar você pra algo melhor.

Ele lançou um olhar malicioso ao comparsa e depois tornou a observá-la, aproximando seu rosto do dela, de modo que ficaram a poucos centímetros de distância. Ela tornou a virar a cabeça para o lado, mas ele a puxou de volta pelo queixo com a mão rechonchuda, que tinha um cheiro verde, o aroma de alguma erva.

_ Como fez aquilo? – tornou a perguntar, cuspindo as palavras.

“Lucas, por favor?”

Enquanto ela tentava forçar a cabeça para cima, o amigo já se postava diante do ruivo, que engulhou baixo e perdeu os sentidos.

Ana esperava a ação de Lucas, observando furiosa o rosto do moreno, rente ao seu, quando sentiu ondas de calor desprenderem-se de sua face e percebeu as imagens, antes borradas, entrarem em foco. Inexpressivo, mas sem desviar o olhar da garota, o moreno começou a engulhar e desabou ao lado da maca.

_ Mas o que é que foi isso? – Lucas pareceu surpreso, especialmente com a tranquilidade com que Ana encarou a situação.

_ Sei lá, só me tira daqui.

Em movimentos curtos e rápidos, Lucas desatou as amarras das mãos e dos pés de Ana, que desceu da maca trocando os pés descalços. Ainda com o vestido que usara no casamento de Pierre, ela deixou a saleta guiada pelo amigo. Saíram no corredor mal iluminado de um hospital, onde havia macas de aspecto envelhecido dos dois lados, por toda a extensão.

_ Que lugar medonho... Lembra o meu Taberna, quando começamos a construí-lo. Bons tempos! - Lucas verificou.

Caminhavam em direção à curva no final do corredor, quando um enfermeiro surgiu de lá: vinha de cabeça baixa, folheando o bloco de uma prancheta. Ana começava a erguer uma mão para chamá-lo quando Lucas usou o vento novamente para empurrá-la na direção de um quarto escuro à direita, contra a porta entreaberta. Ela deslizou pelo chão até parar aos pés de uma estante de metal.

_ Vocês precisam parar de me jogar contra coisas. Paredes – ela olhou para trás, esfregando a parte de trás da cabeça com uma mão – paredes de ferro...

Lucas mal percebera que aquele quartinho era o almoxarifado, a voz de uma mulher cruzou a penumbra.

_ Olá?

Uma jovem enfermeira, de rosto afogueado, apareceu arrumando os cabelos. Um rapaz de jaleco branco surgiu das sombras atrás dela, igualmente ruborizado.

_ Ouviu algo?

Sem esconder o sorriso, Lucas fez sinal para Ana permanecer em silêncio e atravessou o cômodo até a última estante. O espectro soprou algo no campo de audição dos dois funcionários e ambos deixaram o local trotando, benzendo-se ao alcançar a porta, que trancaram com um puxão. Lucas fez uma cadeira ir deslizando até a maçaneta e escorou-a por baixo.

_ Fica aí, Ana – ele se afastou e começou a fuçar entre as estantes. Não demorou muito e estava de volta, deslizando um uniforme pelo piso empoeirado até os pés da garota.

_ Vista-se para sairmos daqui.

_ Ou eu posso ir até a direção do hospital e dizer que eles têm dois empregados pilantras, que torturam pessoas naquela sala cheia de gente morta.

_ Primeiro: você não vai querer contar a sua história. Segundo, preciso tirá-la daqui.

_ Este é o melhor lugar para estar se o que eles me deram for perigoso – ela bateu de leve no antebraço – Aliás, onde você estava quando me prenderam?

_ Não posso dizer que entendo o que acontece. Quando dorme, você desaparece das minhas vistas.

_ O quê? E nunca achou isso estranho?

_ Não tanto quanto duas pessoas de planos diferentes se comunicarem! Eu só consigo vê-la quando está consciente, ponto.

_ Mas não deu a mínima quando o seu irmãozinho brutamontes me arrastou daquela igreja, no meio da tarde!

_ Porque você apagou em algum lugar. Bêbada, eu suponho.

Ana fulminou-o com um olhar.

_ Troque logo estas roupas e vamos embora, menina.

_ Vira pra lá.

_ Não há nada aí que eu já não tenha visto.

_ Como assim?

A discussão provavelmente continuaria, não fossem as fortes passadas no corredor que só não eram mais audíveis do que o ruído da chuva fustigando as janelas e o som das buzinas vindo da rua.

_ Vem alguém aí. Silêncio.

 Lucas cruzou a porta e verificou que o ruivo, Luís, não apenas já estava de pé, como disparava pelo piso branco. Não conseguiria entrar ali a não ser que derrubasse a porta, mas ainda havia a possibilidade.

_ Parece que você derrubou um, Ana.

Para poupar tempo, Lucas fez os trajes de enfermagem entrarem em Ana de qualquer jeito e amassou a máscara em seu rosto. Ela só precisou puxar a liga para trás da cabeça.

_ Você imaginou que fosse tão fácil conseguir um uniforme de hospital? - ela sorriu.

_ Quem tentaria algo assim? – Lucas bufou. Era uma pergunta retórica, mas Ana abria a boca para responder quando ele a interrompeu – Vamos.

Assim que o homem sumiu na curva, ele abriu a porta e instigou Ana a correr. Aquele piso estava claramente em fase de reforma suspensa. As duas janelas, uma no início e outra no fim do corredor, estavam cobertas por lonas, impedindo que a chuva entrasse; havia cavaletes e latas pelo chão, e um buraco no teto deixava à mostra alguns fios mortos do sistema de iluminação.

Ana se demorou mais longamente observando a fiação, mas baixou os olhos em tempo de ver alguém atrás do último cavalete, próximo à janela do fim do corredor, a única fonte de luz agora. Ela recortava a figura de uma mulher, com um vestido que ia até os joelhos; o vulto estava coberto por sombras e parecia observá-los. Quando Ana estreitou os olhos para enxergar melhor, Lucas a empurrou na direção do corredor à esquerda, oposto ao que vira os dois homens seguirem.

_  Eu já estive aqui.

_ Claro que esteve. Circulando, Ana!

_ Eu já estive aqui, sim! É o hospital central de Alexandre. Estou em casa de novo.

Ela disparou sozinha pelas escadas, à direita. Desceu determinada os dois lances seguintes e enveredou por outro corredor. Sabia onde queria chegar e quem estaria ali, à sua espera, e apressou seus passos.

As paredes cinzentas adquiriam um tom esverdeado à medida em que Ana avançava; sombras de médicos, enfermeiros e pacientes transitando e conversando no corredor, em um dia normal no hospital, emergiram em sua mente, acompanhando a sua corrida. As vozes deles soavam distantes, mas eram familiares, como se ela tivesse encontrado conterrâneos em um país estrangeiro.

Contou mentalmente os quartos por que passava, tocando os portais por breves segundos, até dar um encontrão em alguém e cair sentada no piso frio. Era o ruivo, Luís.

O homem agarrou Ana pelo braço e puxou-a para si. Segurou-a pela cintura com um dos braços e prendeu a boca dela com a mão livre. A garota sacudia pernas e braços no ar enquanto era arrastada para trás, na direção do andar superior. Ele era mais forte do que parecia.

Lucas olhou ao redor, mas não havia um só objeto, no corredor daquele piso, que pudesse atirar contra o ruivo. Aproximou-se e mirou os olhos de Luís, mas nada aconteceu.

_ Opa.

“Que foi?”, Ana pensou.

_ Parece que só funciona uma vez. Esta é com você, menina.

“Mas eu não posso fazer o mesmo!”

_ Pode, sim! Tanto que fez, há pouco. Tente de novo!

Ela se contorceu como pôde, mas o homem a segurava com muita força. A alternativa era forçar a boca o suficiente para abri-la, e foi assim que conseguiu morder a mão do ruivo com ferocidade. Nos breves instantes em que ele a soltou, berrando de dor, Ana fincou as unhas no braço que a retinha pela cintura, virou-se e agarrou o rosto sardento de Luís entre as mãos úmidas. Não foi preciso muito esforço para sentir as ondas de calor sendo liberadas de seu corpo. Em segundos, Luís havia apagado.

_ Homem no chão!

Lucas bateu palmas e brincou com a ideia de Ana dar um espectro melhor do que ele, enquanto ela tornava a correr na direção dos quartos. A chuva ainda fustigava as paredes externas e o som de buzinas vindo da rua aumentara.

Enfim, alcançou a penúltima porta antes da próxima escadaria. Entrou, seguindo pelo caminho que bem conhecia. Observou cautelosa cada leito por que passava, mas continuou decidida até o último, logo abaixo da janela alta de ferro. E encontrou-o vazio.

_ Todo esse suspense para isto? – Lucas comentou sarcástico, ao que ela respondeu com um aceno negativo de cabeça e logo retrocedeu em direção ao corredor, seguindo escadaria abaixo. Não encontraram vivalma por onde passaram. No térreo, porém, a situação não poderia ser mais diferente.

Reinava uma algazarra sem precedentes no primeiro piso.

A água barrenta da chuva, tendo tomado conta das ruas, invadia a recepção. Pela porta viam-se pessoas abrigadas sobre um telhado, do outro lado da rua, ou tentando salvar pertences, atravessando a enchente. Ana sentia o cheiro acre dos resíduos da saída de água sob a ponte Larousse, misturados à enxurrada.

A cheia alcançava os joelhos de enfermeiros que se chocavam empurrando macas, carregando crianças ou apoiando idosos na direção do primeiro andar. Uma gestante de cabelos longos e úmidos, que lhe empastavam o rosto, subia os degraus com a ajuda do enfermeiro da prancheta, que viram no andar do necrotério.

Algumas pessoas ainda estavam em choque, outras berravam sobre a rapidez com que a água dominara o lugar, enquanto mais gente vinha da rua, pedindo ajuda, ou simplesmente, passando às pressas pela escadaria na direção do primeiro andar.

Uma dessas pessoas deu um encontrão em Ana, fazendo-a bater de costas contra o corrimão da escada. Apática, ela desceu até o piso, mesmo que a água continuasse subindo e já alcançasse o seu quadril.

_ Era para estar aqui.

_ E está, filha.

Em meio à balbúrdia, uma voz feminina rascante alcançou os ouvidos de Ana e sobrepujou a desordem. A garota não se virou: já esperava que a senhora de vestido longo aparecesse ali.

_ Onde ele está?

_ Adiante. Veja.

E ela o viu.

O menino de olhos cor de mel estava parado perto da porta, encharcado, observando-a de volta, alheio à movimentação das outras pessoas, com seus olhos e traços tão familiares. A lembrança de onde Ana o conhecia veio em forma de onda. Ela sussurrou algo antes de seus joelhos cederem, mas não foi ouvida.

Ana desapareceu sob a água turva.



***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

[CONTO] Dulçoroso (Ar de Evasão III)


Início de novembro. Ana sentiu o bafejar quente da criatura em seu pescoço, mas não abriu os olhos.

‘Deve ser um desses cães perdidos, que fuçam tudo o que encontram’, pensou, enquanto sacudia um braço para afastar o animal. Ouviu o gotejar da chuva que batia nas calhas ao redor e deduziu, com satisfação, que acordara em terra firme mais uma vez.

O bafejar se transformou em uma risadinha e dois cutucões, logo abaixo de sua orelha esquerda, seguidos por um forte puxão sob seus cabelos. Considerando o último semestre, Ana não poderia dar-se o luxo de duvidar do que existe entre o céu e a terra, muito menos nesse momento, quando era presa fácil para um possível inimigo.

Abriu os olhos inchados e encontrou, mirando-a de volta, dois olhos cor de mel, tão próximos que pareciam tentar radiografar a sua alma. Assustada, a garota empurrou a criatura e se arrastou de costas, tomando distância. Levou uma mão automaticamente ao peito, onde estava o velho medalhão emperrado da sua família. Era  uma peça média, de ouro velho, com um cordão grosso - o único bem que a ligava ao seu passado obscuro, às suas raízes misteriosas. E não pretendia perdê-lo, não importa o que tivesse de fazer.

Não era um animal, enfim,em todo caso, mas um menino de cinco ou seis anos, a julgar pela altura.

O que chamou a atenção de Ana foram os traços familiares no rosto e os olhos dele. Isto, e a bolsa improvisada da garota, neste momento balançando nas mãos do pequeno. A sacola continha alguns pertences, uma faca de cozinha e uma banana madura, que serviria de café. Decidiu não espantá-lo e perguntar o que queria com as coisas dela.

Esboçava um rouco “De onde conheço você?” quando o garoto abriu um largo sorriso e se lançou na direção da rua. Usava um terninho preto e Ana esfregou bem os olhos, para confirmar que estava acordada. De fato, havia um terno minúsculo atravessando a rua apressado, chacoalhando uma pequena cabeça no topo e uma sacola na mão direita.

Ela tomou apenas os segundos de que precisava para perceber que acordara, desta vez, entre os brinquedos de um playground, nos fundos de uma casa antiga, em uma cidade qualquer.

_ Lucas, você viu aquilo? Lucas?

O espectro não estava por perto, mas Ana decidiu não esperar: pôs-se atrás do menino, que já atravessara a rua e passava por um beco gramado entre duas casas.

Com o preparo físico que as perseguições e fugas ofereciam como recompensa, Ana imaginou que poderia inscrever-se para a próxima maratona de Alexandre. Ficar em uma boa colocação era moleza e qualquer prêmio compensaria a corrida. O verdadeiro desafio seria acordar na cidade no dia da prova.

Seu estômago começou a reagir ao amanhecer, mas ela não podia perder o menino de vista. Ignorou os reclames de seu corpo e continuou, agora desejando a fruta mais do que antes. Encontrou o pequeno parado, do lado de fora de uma capela, dez metros adiante, do outro lado da rua. Ele entrou no prédio, um sorriso travesso ainda brincando em seu rosto, e ela o seguiu.

Ao entrar, vasculhou o local rapidamente, mas a capelinha estava vazia. Ofegante e de cenho franzido, ela se sentou em um dos bancos lustrosos, fechou os olhos e deitou a cabeça sobre as mãos, no encosto do banco dianteiro. Ao reabrir os olhos, encontrou a sua bolsa ali ao lado, sobre o banco, da forma como sempre a deixava, ao parar em algum lugar: como um rolinho preso pelas abas.

Imaginou se a criança fora um delírio causado pela abstinência. Não fosse a única fruta da bolsa, que ela tratou de devorar antes que acontecesse qualquer outra coisa, aquele seria o segundo dia sem uma refeição de verdade, o que significava: nada cozido, quente ou com o melhor gosto do mundo. Deveria ter esfregado os olhos com mais força, ainda no playground. Agora, as suas pernas estavam trêmulas demais para ficar de pé. Adeus, maratona.

Ana passou algum tempo observando o altar e as colunas enfeitadas com flores brancas. Imaginou se devia fazer uma das orações que aprendera na infância, já que estava ali, mas lembrava-se tão claramente delas quanto das feições de seus parentes. Ela não sabia dizer se já entrara em uma igreja, antes. Em todo caso, duvidava de que conseguiria raciocinar enquanto não se alimentasse de verdade. Levantou decidida, fez algumas voltas com as abas da bolsa no punho e caminhou até a porta.

Lucas surgiu rente ao portal, mas o susto que Ana engoliu não conseguiu interromper a sua marcha. Ela atravessou o amigo e a sensação foi a mesma de um desfalecimento. Catou cavaco até cair esparramada, no piso de pedra da beira da escada.

_Por que só apareceu agora? – perguntou, enquanto apoiava-se no piso, para ficar de pé. Seu queixo tremia muito.

_Não sei. Como conseguiu acordar em uma capela?

_Não acordei aqui.

_Não importa, meu bem, é melhor sair daqui rápido, os convidados estão chegando.

_Do que você me chamou, Lucas? - Ana sentiu um embrulho esquisito na barriga; algo se contornia ali dentro, usando garras e tentando sair à força.

_Venha – Ele a puxou pelo braço, utilizando o vento da forma como aprendera, no início da primavera.

Inúmeros carros faziam fila de um lado da calçada e pessoas elegantemente vestidas se dirigiam à porta da capela que, vista de fora, era bem maior do que parecera há pouco. Lucas indicou um dos lados da igreja e Ana o seguiu.

_Tenho algo para você, enquanto o noivo se acomoda na sacristia – ele apontou para um pequeno pacote disforme, largado sobre a grama.

_O noivo é cego? – ela se surpreendeu ao ver o rapaz que chegava, com uma flor na lapela e uma venda cobrindo os olhos. Ele era guiado até a igreja por outro homem, que também usava roupas de domingo e o ajudava a subir os degraus.

_Você não acreditaria nessa história. Aliás, mocinha, já pedi para você substituir estes termos chulos. “Cego”? O que tem aprendido comigo, nas aulas?

Lucas resolvera que, nos longos momentos sem suspeitos a seguir ou esperando que os mesmos fizessem alguma besteira, ele daria aulas de idiomas e de conhecimentos gerais a Ana. Ela poderia compensar uma parte dos ensinamentos escolares que vinha perdendo, desde que a sua anomalia se tornou um impasse aos estudos.

_Em todo caso, creio que gostará de presenciar este casamento. Vamos, abra o pacote! – Lucas bateu palmas, sorrindo. Ana não reagiu com o mesmo entusiasmo, até descobrir o que embrulho trazia: no topo, havia um saco de papel contendo um pão e uma variedade de frutas fresquinhas e limpas.

Ela não contou o tempo de admirar as maçãs e começou a devorá-las uma a uma. Só quando parou para respirar, percebeu o que viera no fundo do pacote: um vestido de estampa florida em rosa, amarelo e verde, mais um par de sapatos amarelo claro, sem salto. Não perguntou qual era a procedência de tudo aquilo, porque, sempre que o amigo aparecia com novos objetos, dizia que vinham de ‘felizes acasos de infelizes’.

Ana esfregou os olhos com bastante força, dessa vez.

_Eu vou entrar? – mirou o amigo com olhos satisfeitos – Por quê?

_Porque eu vou e você vai comigo.

Ela preferiu não discutir.

Ana tinha algum trabalho a fazer com os detalhes que Lucas não conseguira arranjar, o que era, basicamente, todo o resto. Mas ele a encorajou, dizendo que provavelmente causaria espasmos de inveja nas convidadas, quando vissem a pele perfeita do seu rosto.

O banho rápido, em uma fonte ali perto, foi a parte fácil. O cabelo é que a tirou do sério: ela inventou uma série de nós com os fios grossos, mas todos faziam a sua cabeça parecer um ninho de joão-de-barro. Lucas sumiu por instantes e quando Ana ouviu a voz dele novamente, esta vinha da direção da fonte.

_Aqui, corte fiapos com aquela faca – ele apontou para um cipó verde escuro rígido, à beira da fonte, onde o terreno era alagado – Isto é junco. Vai segurar firme o seu cabelo e fazê-lo parecer bonito – continuou, enquanto ela sacava a faca de cozinha.

_Eu ouvi dizer que junco leva uma semana para secar.

_Deixe os detalhes para a minha pessoa, Ana.

Este era o dia mais diferente de que a garota se lembrava, especialmente pelo fato de que havia pequenas rajadas de vento trançando o seu cabelo com fiapos verdes de junco, à beira de uma fonte, em terras desconhecidas.

Lucas e a sua acompanhante conseguiram entrar na igreja antes da noiva, o que não era uma vitória maior do que ver as senhoras por quem passavam virando as cabeças na direção de Ana.

_Eu não disse que você causaria passamentos? – Ele sorria e acenava para todos, ainda que não pudessem vê-lo. Ana, que não sabia onde pôr as mãos, murmurava que não deveriam estar ali sem convite.

_Vamos! O pior que pode acontecer é a noiva confundir você com o buquê!

Ela bufou, mas sorriu.

A noiva chegou com quarenta minutos de atraso, segundo o que Ana conseguiu captar das conversas entre os convidados sentados mais perto dela. Ela se sentara na extremidade de um dos bancos, com Lucas de pé, ao seu lado.

Durante toda a cerimônia, ela observou, o noivo permaneceu com a venda sobre os olhos e só começou a desamarrá-la quando o padre lhe ordenou que beijasse a noiva.

‘Qual é o mistério do lenço?’, Ana pensou, lançando um olhar a Lucas, sabendo que ele podia ouvir o que se passava em sua mente.

_Digamos que ele redefiniu a tradição sobre não ver a noiva antes do casamento – Lucas posicionou as duas mãos na própria cintura, orgulhoso.

‘É brincadeira?’

_Não, é o meu pupilo.

Ana observou incrédula enquanto o rosto de Pierre emergia do lenço azul.

A recepção aconteceu no pátio atrás da igreja e, a despeito dos atalhos que utilizaram para entrar sem convite, Ana desejava fugir dali o mais rápido possível, antes que o noivo a encontrasse e resolvesse terminar o que começou no bar, meses atrás.

_Ofereço-lhe a chance de ver um casamento razoavelmente interessante, entrar sem convite em uma festa belíssima, repleta de comida, e você me aparece com essa expressão de “minha carroça virou no rio”? O que há de errado com você?

_Primeiro: o casamento foi muito bonito. O que me preocupa é estar inteira, no café de amanhã.

_Ele não vai reconhecer você, mesmo.

_Como pode ter tanta certeza? – ela sentiu um forte puxão na barra de seu vestido. Virou-se em tempo de ver o mesmo menino que fugira com a sua bolsa, pela manhã. Ele tornou a correr na direção da capela.

Ana desligou qualquer defesa e nem se importou em chamar Lucas desta vez, porque pegaria aquele baixinho de jeito, agora. Ela sorriu indulgentemente para alguns convidados e, uma vez que estava fora das vistas de todos, correu na direção do garoto.

Ainda correndo, o menino entrou na igreja e ela seguiu seus passos, desta vez atenta a qualquer movimentação sob os bancos e na direção do altar, para onde se encaminhou apressada.

_Está fugindo de quê? Pode cutucar e roubar, mas não encarar, é? Cadê você, pivete?

Ana bufou e passou as mãos, nervosamente, pelos cabelos, que começavam a se soltar da longa trança. Procurou embaixo das cadeiras, do altar e, nada encontrando, dirigiu-se à sacristia. Fez um giro completo para a entrada, ao ouvir um pequeno ruído, mas o garoto não estava lá.

Dera apenas três passos na direção da porta, esfregando as mãos contra o rosto, quando sentiu seu corpo ser puxado contra o de alguém, em uma chave de braço.

_Eu não sei como entrou aqui, mas quero saber o que pretende.

Era a voz de Pierre.

_Logo hoje! Qual é o seu problema? E não venha com a história da fome, de novo, que não desce.

_Lucas – ela sussurrou, chamando pelo amigo.

_Também não caio nessa. Aliás, quem me garante que você não tem algo a ver com a morte do meu patrão?

Ele liberou o pescoço de Ana, mas pressionou sua mão contra a boca da garota. De um bolso interno do paletó, puxou o mesmo lenço azul que usara durante a cerimônia e, sem desviar o olhar do rosto da moça, utilizou-o para amarrar os pulsos dela um ao outro.

Arrastou-a, pelos fundos da sacristia, na direção de um carro, que estava estacionado na lateral da capela, onde não havia convidados à vista. Depois de acenar para um homem de terno, que observava a cena da porta da sacristia, Pierre jogou Ana de qualquer jeito no banco do carona.

Alcatão era cidade irmã de Alexandre, mas Ana nunca a visitara antes, nem em evasões. Perguntava-se onde Lucas estaria e se a ligação entre eles lhe permitiria encontrá-la em qualquer lugar. Fazia vinte minutos que ela não considerava a possibilidade. Talvez ele precisasse conversar com outros espectros.

Pierre estacionou do lado do bar e fez a volta. Ana tentou escapar, mas não teve sucesso. O dono do bar guiou a garota pela porta dos fundos, que estava destrancada, mas não ficaram na cozinha: ele a empurrou na direção do porão.

Ana engoliu em seco, aterrorizada pelo silêncio. Na ausência inexplicável de Lucas, preferiu ficar quieta e seguir as ordens. Enquanto descia as escadas, observou de relance os quadros pintados diretamente na parede e todos pareciam apenas uma parte da pintura bizarra do local, mas um deles reteve mais a sua atenção. A penúltima foto mostrava o menino de olhos cor de mel sorrindo, sentado em um balanço de parque.

Alcançaram a base e Ana foi empurrada novamente, desta vez, na direção da parede. Pierre trancou a porta e caminhou lentamente até postar-se cara a cara com a garota.

_Fala.

Ana lançou ao rapaz um olhar carrancudo, permaneceu em silêncio e se sentou no chão, de braços e pernas cruzadas.

_Não vou perguntar de novo.

Silêncio.

_Você sabe que esse lugar está todo gradeado, justamente por sua causa, certo? Não pode sair.

Ela deu de ombros.

Sem tirar os olhos da moça por mais do que breves segundos, Pierre foi até uma mesa coberta de ferramentas perto da porta e agarrou um punhado de cordas grossas e um martelo. Sem mais delongas, atou firmemente os pés de Ana e suspirou forte. Balançou o martelo a centímetros do rosto da garota por alguns instantes.

_Amanhã – ela respondeu olhando para o piso sujo, sabendo que só precisava dormir um pouco. Um sorriso brincou em seu rosto, que estava encoberto pelos cabelos claros, agora soltos.

Pierre se agachou para observá-la à altura dos olhos e virou a cabeça, com desdém, em resposta.

_O que me impede de quebrar os seus dentes bem agora?

_Na hora em que eu resolver falar, é bom que eu consiga falar, não é?

Ele baixou a cabeça, passou a mão livre pelos cabelos. Levantou-se decidido e atirou o martelo contra a parede, fazendo aparecer uma mossa no ponto onde a ferramenta bateu.

_Cinco horas – ele apontou um dedo ameaçador para a moça e saiu, batendo a porta e trancando-a por fora – você não vai fugir!

_Nem vou tentar.

Pierre voltou, às cinco da manhã, mas Ana estava certa: saiu dali de olhos fechados e antes mesmo de acordar.





***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

[CONTO] Em Cores (Ar de Evasão II)

De uns tempos para cá, Ana se sentia em piloto automático. Faz isso, faz aquilo, persegue, corre. É como se a sua vida passasse dentro de uma daquelas caixas de madeira velhas que, nos anos 50, as pessoas consideravam aparelhos de TV e que a sua avó afirmava só ver em cinza.

‘Preto e branco? Só propaganda!’

Ana levou alguns anos para entender que ela não falava dos comerciais.

Aquela era a sua lembrança mais antiga. Sentia falta da avó e daquela casa antiga, onde ainda sabia chegar. Se pudesse entrar um avião e aproveitar algumas horas! Nem em sonho poderia chegar a outro estado correndo ou de carona, em tempo. Não tinha certeza de quanto aguentaria sem dormir, o recorde havia sido de dois dias.

Mas isto passou longe do seu primeiro pensamento do dia.

“O píer, outra vez, não!”

Ainda bem que estética capilar e rotina estavam entre as suas menores preocupações. Uma onda curta e forte fez Ana embolar até a parte rasa, perto de uma das colunas de madeira. Apoiou as duas mãos para trás, na areia do fundo, enquanto a maré alta lhe roçava o queixo.

Afastou os cabelos de cima dos olhos e esfregou-os com força. Estava pronta e zangada o suficiente para sair da água e esperar horas até que a roupa secasse, quando ele a empurrou para baixo. Ana viu bolhas por todo lado e seus braços se agitaram na água, tentando alcançar um pescoço que não poderiam apertar, por maior que fosse a sua força de vontade.

Tudo começou a ficar branco, se por causa da espuma ou do seu oxigênio, que saía para um passeio, não sabia. Muitos pensamentos pipocaram em sua mente, enquanto sufocava, mas nenhum que ela pudesse expressar em palavras educadas. Aquele era um dos truques que Lucas havia aprendido recentemente: utilizar a força do ambiente. Quando Ana começou a pensar que ele talvez desejasse a sua companhia em uma forma menos corpórea, por assim dizer, a pressão sobre o seu tórax cedeu.

_Precisava fazer tanto estardalhaço? – ele bufou.

‘Gostaria de poder bater nele’, Ana pensou.

_Você tem braços bem fortes, para quem está morto há meses!

Berrou zangada, respirando com força. Era irônico que o sol e o mar tenham escolhido esta manhã para debochar de seu mau humor. O céu, sem uma nuvem, estava azul de fazer doer os olhos.  No meio da cidade, ela costumava acordar debaixo de chuva. Tão espirituoso!

_Eles estavam bem ali!

_Dá um tempo, Lucas – a garota ralhou, enquanto tentava dar um jeito nos cabelos.

Os novos suspeitos, claro! Não era exatamente o que desejava na hora do café. Lucas não parou de falar dos sujeitos desde que viu um deles comprando um jornal, dias atrás.

Após a operação com o prefeito, tiveram mais quatro experiências falhas em dois meses. Ana não mencionara as suas suspeitas sobre a primeira-dama porque o fato de ela ter saído da Taberna, no dia da morte dele, podia não ser nada; a mulher apenas saiu afobada, antes do marido. De qualquer jeito, Ana ainda não queria que Lucas sumisse, mesmo sabendo que estava sendo egoísta e que não poderia esconder aquilo para sempre.

Ele cismara com os dois sujeitos, um moreno baixo e um ruivo mais alto e magricela, que haviam aparecido na Taberna, poucos dias antes de sua passagem. Forasteiro que aparece sem uma boa razão nunca traz coisa boa na mala.

Ana viu os dois, pela primeira vez, nesta manhã de sorte em Alexandre, depois de quatro dias acordando nos lugares mais grotescos, como a saída de água embaixo da ponte Larousse.

Voltaram ao bar, na intenção de recriar a cena do crime por sua própria conta, logo cedo da manhã. Cansaram de tentar entender porque a polícia arquivara o caso. Facilitaria muito a vida dela e a morte dele.

Observaram, de trás de um ipê amarelo, do outro lado da estrada, quando o moreno baixo e seu companheiro saíam da Taberna, seguidos pelo atual administrador, Pierre.

Ana percebeu que suas roupas estavam precisando de um banho tanto quanto ela. Também registrou mentalmente que tinha acordado, pela segunda vez, no píer de Alexandre. Será que havia algum tipo de padrão? De fato, o tempo estava seco.

_Bom saber que está em boas mãos. Não me arrependo de ter deixado a minha Taberna para ele, sabe? Sempre foi bom aprendiz, o meu primogênito – Lucas suspirou orgulhoso, enquanto Pierre levantava uma vassoura e ameaçava o moreno e seu amigo, ambos visivelmente bêbados, aborrecidos e sendo expulsos do local.

_ Primogênito?

_ Primeira criação minha, oras! - ele desconversou, como sabia fazer bem - Eles só beberam cerveja, naquele dia, mas cochichavam, no canto do bar, o tempo todo. Não cheguei a atendê-los pessoalmente, ficaram para Pierre – Era incrível como Lucas se lembrava de cada pessoa que já passara por sua vida, menos do próprio assassino.

_Vamos chegar mais perto e esperar, é hora de fazer o caixa – ele sugeriu e Ana se esgueirou pelas árvores, fez a volta até os fundos do bar e agachou-se atrás da lavanderia. Essa época do ano é perfeita para se esconder na mata, porque tudo está colorido, brotando e florindo, e há cobertura suficiente.

_Quero ver como andam os negócios. E preciso de alguma cobertura.

_Ei!

Sussurrou, gesticulando feito louca, mas ele passou para dentro do bar antes que ela se levantasse. De todo jeito, ele só precisava que Ana permanecesse dentro da área que ele queria visitar, então ela se apoiou na borda da lavanderia, subiu e espiou pela janela redonda de vidros engraçados, como fizera naquela terça-feira fatídica.

A cozinha estava vazia, mas havia uma dúzia de laranjas na fruteira sobre a mesa. A sua nuca esfriou: sentiu fome e lembrou que estava chovendo naquela terça, quando acordou embaixo da lavanderia: mas o que a água tinha a ver com aquela anomalia?

_O que está fazendo? – uma voz grave a sobressaltou e ela caiu sem jeito sobre um amontoado de carne. Ele a jogou para um lado e Ana tentou fugir, arrastando-se pelo chão, mas ele a prendeu contra a parede, segurando, com força, seu pescoço. Encarou Pierre mais de perto do que desejaria.

_Eu vinha mesmo avisar que ele não estava lá dentro – Lucas informou alegre, quando reapareceu do lado de fora – o faturamento vai melhor que antes. É o negócio de uma vida!

_Pelo amor de Deus, eu estou contra a parede, aqui!

_E vai continuar até dizer o que quer ou vou chamar a polícia, moleca – Pierre berrou. Ele tinha braços realmente fortes, mas nada de cavalheiro.

_Diga que quer comida, Ana – Lucas falou sério.

_Estou com fome, moço!

Mas Pierre não afrouxou a mão.

_Diga que me conhece. Ele é de confiança – Lucas prosseguiu, menos tranquilo do que antes.

“E se ele perguntar como eu te conheço, gênio?”, Ana pensou, olhando para  o amigo, furiosa.

_Diga!

_Eu conheço o seu patrão – a voz saiu engasgada.

Nada.

_Diga que não há lugar como a casa que escolhemos – Lucas berrou impaciente.

_Nada como a casa que a gente escolhe, certo?

Pierre levou dois segundos para se decidir.

Em alguns minutos, Ana ocupava uma mesa da Taberna, com um café da manhã melhor do que peixe mal passado. Pierre se sentou na cadeira em frente a ela, depois de virar uma frigideira de ovos mexidos em um prato com pães.

_Pode começar dizendo como conheceu o meu patrão.

_Ah, foi aqui mesmo, neste bar. Ele simplesmente entrou na minha vida e, desde então, somos muito ligados.

_Eram, você diz.

_Algumas coisas, sem explicação, duram muito tempo – ela olhou para Lucas, que sorria satisfeito, de seu lugar, empoleirado e de pernas cruzadas sobre o tampo da mesa, ao lado do rapaz – ele chegou a dizer que você sempre foi um bom aprendiz. Uma pessoa confiável.

_Por que ele nunca me falou de você? – ele pôs café em uma xícara e empurrou na direção dela.

_Ninguém sabe que somos amigos.

_Eram.

_Ou isso – tomou um gole do café. Estava muito bom.

_Hum. Ele me encontrou dormindo lá atrás, perto do poço. Cresci na rua, mas ele me deu um lar e trabalho aqui. E nunca agradeci – Pierre mencionou, em voz baixa, desviando o olhar dela pela primeira vez.

_Ele sabe, pode ter certeza. A propósito, vi você expulsando aqueles dois. Clientes chatos?

_Eles só tiveram o que pediram.

Ana ergueu uma sobrancelha. Pierre permaneceu calado por alguns minutos: era moço, ainda, mas seu rosto era sério. ‘Marcado por tempo e rua’, ela imaginou. Não conseguiu adivinhar quantos anos ele tinha, nem tinha pressa de perguntar.

_Onde mora? – perguntou.

_Aqui mesmo, em Alexandre, mas a minha vida tem sido agitada desde que Lucas fez a passagem.

_Você fala esquisito.

‘E você me olha esquisito’. O pensamento de Ana lhe escorregou pela garganta e foi alojar-se, congelado, em seu estômago.

_Preciso ir – levantou de um pulo e correu até a porta dos fundos, com Lucas xingando surpreso atrás dela. Atravessou a rua ainda correndo e não parou até estar a uma boa distância, o que levou quase dez minutos e um tombo nas raízes.

_Você enlouqueceu?

_Você testou o seu amiguinho? – ela dobrou o corpo, para recuperar o fôlego e ver o estado de seu joelho direito.

_Por que eu faria isso? Ele praticamente cresceu sob as minhas vistas.

_Certo. Essa herança sua foi acertada direito ou só de boca?

_De boca, eu assobiava, Ana. Claro que procurei um advogado e deixei tudo formalizado.

Ele percebeu onde Ana queria chegar.

_Eu não posso desconfiar de um irmão, Ana!

_Não pode ou não quer?

_Se eu não tivesse as minhas obrigações, estaria virando as minhas costas ultrajadas para você neste exato momento.

_Você tem que tirar a prova.

_Não farei isto.

_Onde ele estava, naquela terça?

_Em Algodão Grande, negociando com fornecedores.

_Como pode ter certeza?

_Eu o mandei para lá!

_Você é impossível.

Ana mastigou a suspeita por algum tempo, procurando por razões para não fazer o que sabia que devia fazer. Ainda não havia uma única nuvem no céu.  Quando a tarde começou a cair, ela levantou, decidida, e voltou ao bar, sabendo que Lucas teria de ir também. Bateu decidida, à porta dos fundos.

_ As pessoas chegam à noite, Ana. Ele não abriu ainda; obviamente, deve estar em casa. E, a julgar pelo seu comportamento, vai mandar colocar gradeados em todas as janelas até amanhã.

_Onde ele mora?

_Como se eu fosse dizer!

_Onde fica a casa dele, Lucas?

Mas ele não precisou responder. Ouviram uma porta batendo forte e o som abafado vinha de dentro do estabelecimento. Ana correu para os fundos, mas a porta já estava trancada.

Ela escalou a lavanderia e entrou na cozinha pela janela de vidros engraçados, que parecia nunca estar trancada. Lucas ainda berrava e xingava, mas ninguém além dela podia ouvir, mesmo. E Ana sabia como forçá-lo a testar Pierre.

Uma vez dentro do local, destrancou a porta dos fundos, caso precisasse fugir de repente. Guardou duas das laranjas da mesa em um saco improvisado, de panos de prato. Em sua mente, não estava realmente roubando: o dono do lugar viajava com ela.

Depois vislumbrou o brilho de uma faca de cozinha sobre a pia, pegou-a e a guardou no bolso. Gritou o nome de Pierre três vezes antes de ele aparecer.

_Ah, esqueceu a sua educação embaixo da mesa? Porque eu a encontrei – ele falou com maus modos, mas bem explicado – e, pelo jeito, vou precisar colocar grades neste estabelecimento.

Lucas lançou um olhar de “Bem que eu disse” para Ana, mas ela deu de ombros.

_Quero saber onde você estava, no dia em que Lucas fez a passagem.

_Como? – O rapaz ficou paralisado por segundos e, então, deu um passo à frente, a expressão muito séria.

_Você é surdo, também?

Ele só precisou de mais três passos adiante.

_Saia.

_Não, até me dizer se foi você – ela teimou.

O rosto dele passou de vermelho a roxo; agarrou o braço de Ana, para forçar o caminho, mas ela resistiu e ele perdeu de vez a paciência. Parecia gostar de jogar pessoas contra a parede. Ela já desejava ser um daqueles clientes chatos, expulsos com vassouras, mas não podia mais fugir.

“TESTE”, ela pensou, olhando para Lucas, “Ou vai ficar sem a minha ajuda!”

A contragosto, Lucas se colocou no pequeno espaço entre o irmãozinho brutamontes e a garota. Pierre começou a engulhar e liberou a pressão sobre o pescoço dela. Em alguns segundos, o jovem estava inconsciente, no chão da Taberna; Lucas observava-o de cima e a garota inspirava forte, de seu lugar, sentada no canto da parede, onde desabara quando Pierre a largou.

_Satisfeita?

Ele estava bem aborrecido quando saiu pela porta dos fundos, ainda fechada. Ana ficou em pé de um salto, escancarou a porta de madeira vermelha e saiu atrás dele, já que, sem ela, o espectro não poderia ir muito longe. O rosto dele parecia estar brilhando mais que o normal quando alcançou o único ipê amarelo da mata fechada, do outro lado da estrada, e seguiu para dentro do bosque. ‘Será que espectros choram?’, imaginou, mas logo abstraiu a ideia.

O fim de tarde chegava, e eles caminhavam na direção do poente. Ana viu riscos rosados, como garranchos de tinta no céu, que finalmente, mostrava algumas nuvens.

Ela não podia mais negar as cores do dia: foram muitas e tomaram muitas formas, especialmente agora, que sabia o que é perder o ar três vezes, em menos de vinte e quatro horas.

‘Talvez as cores estejam sempre aqui e, no piloto automático, o que eu vejo pelo canto do olho são só uns rabiscos’, deduziu.

Ela não sorria de verdade quando pegou uma das laranjas afanadas e começou a descascá-la com a faca.

É que a fruta era de um tom laranja bem mais vivo do que ela lembrava de ter visto, na fruteira sobre a mesa do bar.



***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

 

COMENTÁRIOS ANTERIORES


Beronique disse... Tô gostando cada vez mais disso aqui, é uma idéia realmente surpreendente a desta história. Se o que ela tinha pela mulher do prefeito é apenas uma suspeita, agora eu fico mesmo curiosa pelo desvendar do assassino. Pena que quando isso acontecer, não será apenas a Ana quem perderá o Lucas, mas também nós. Mto bom! :-) 12 de fevereiro de 2011 09:20

[CONTO] Ar de Evasão

Era uma vez? Não, é a quarta vez, nesta semana.

Pelo menos, hoje acordei neste beco. Suponho que a chuva e a lama sejam um mimo; abrir os olhos sob o píer, na maré alta, ontem, foi dureza. Nem quero pensar no subsolo, ou pior, nas estações de tratamento de água em Paris.

A aurora delineava as formas geométricas das casas do centro de Alexandre. O som da chuva batendo nas calhas acima era reconfortante para o meu torcicolo, mas inspirei apenas dois segundos de alívio antes que aquele espectro irritante surgisse ao meu lado.

_Ana, não pode ir tão longe.

_Se pudesse controlar, já estaria livre de você – resmunguei.

_Física improvável básica, minha cara – murmurou empolado, como se fosse o Cristiano Ronaldo, finalmente levando Portugal a uma final de Copa. Fechei os olhos, impaciente, deixando sua voz apenas passar.

_É a última pessoa que vi antes da passagem, é natural que eu esteja preso a você até encontrarmos quem me tomou do corpo. Então, vou ficar com essa pessoa até o fim da punição e nós não nos veremos mais – explicou quando nos conhecemos, há sete meses, e consegue repetir isso, todos os dias, como se fosse a manchete do jornal de hoje.

_Acordando todo dia em um lugar diferente, você dificulta um pouco as coisas, Ana. Mas isto não me incomoda: você tem uma bela cútis, especialmente, a essa hora da manhã. E, se me permite o comentário, aquele carcamano não era para você, mesmo.

_Super.

Sem casa, dinheiro ou a mínima auto-estima. Ainda tento me acostumar com a ideia de que nunca sei onde vou acordar no dia seguinte, o que começou como uma brincadeira não muito inocente, com aquele livro velho que vovó escondia no sótão da casa grande.

Já fiz observações, cheguei a passar duas noites em vigília, sem que nada acontecesse. O problema é quando apago: simplesmente, acordo a quilômetros de distância. Abandonei escola e trabalho, cansada de tentar voltar para a cidade em tempo. E quanto ao paradeiro da minha família, não tenho ideia, esqueci das feições deles e do caminho de casa. Como se o embrulho fosse pequeno, ganhei de brinde um espectro em meu encalço porque acordei no lugar errado, em péssima hora.

Tentei fugir. Também tinha um problema e tanto, relutei por uma semana porque não era exatamente uma situação divertida, mas alguém devia ceder e eu era a única cansada. Ele precisava tomar um rumo e eu, descansar em paz.

_Ainda não tem ideia de quem te roubou do corpo?

_Teria, se você não tivesse metido o nariz na janela da Taberna, no dia da minha passagem. Estaria perseguindo o bandido e não a sua cútis, pelo estado. Tem noção de como é difícil conseguir localizações com espectros? É fácil encontrá-los em prisões e albergues, mas fazê-los falar, é outra história. Se você fosse normal, seria muito mais fácil.

Isso vinha de alguém que podia atravessar uma parede e sair inteiro, do outro lado.

_O que quer que eu faça, Lucas?

_Primeiro, diga-me por que cargas d’água você foi à minha Taberna, na manhã daquela terça?

_Acordei sob a lavanderia.

_E você não aceita a minha pista mais consistente. É ultrajante!

_Não, é absurda! E vou raciocinar melhor depois de comer alguma coisa.

_Pretende comer o quê, se não tem um tostão? Terra?

Segurei a língua porque Alexandre oferecia alternativas: a questão não é o que você tem, mas quem você conhece, e isto me fez cruzar a cidade. Uma hora depois, sentada à porta dos fundos do Poncho bar, sorri para Nonô, um atendente que se dizia grato porque consegui salvar seu emprego; certa vez, acordei sob a mesa de seu chefe, interrompendo uma briga entre eles. Nunca pedi maiores explicações, ficava feliz por estar em Alexandre e comer de graça.

À minha frente, Lucas observava com inveja os dois sanduíches que eu devorava. Andava quase tão abstêmia quanto ele e não sabia quando teria outra refeição, ou qual seria a procedência dela. Eu não estava triste por não ter um lar, ou o cara que desejei, ou porque podia ver as manchas na parede atrás da minha única companhia constante e translúcida.

Tampouco considerava essa amizade anormal: era bom ter alguém com quem conversar, mesmo que fosse nessas condições, e sabendo que era passageiro. A parte difícil foi dissuadi-lo de sua megalomania.

_Então, o elefante no beco – ele suspirou.

_Sinto muito, mas não creio que o prefeito matou você – falei, ainda mastigando o pão. Cobri a boca com a mão livre.

_Economize palavras.

Lucas ficava realmente sensível com a questão da morte prematura. Aos 31, você prefere estar divertindo-se, trabalhando; não morrendo. Ele gostava de pensar que estava tirando férias da vida, enquanto bancava o justiceiro.

_Então – bati as mãos, para me livrar dos farelos – ele não dormiu em casa, deu uma desculpa qualquer à esposa sobre uma reunião fora da cidade e escondeu-se na Taberna durante a noite, saindo de lá pouco depois do amanhecer. Não nego que vi o cidadão, mas isto não significa muita coisa.

Até onde podia lembrar, Lucas sempre tivera uma boa relação com o prefeito. Até fazia vista grossa quando o homem ia ao seu estabelecimento acompanhado de uma moça diferente, por vez. A Taberna ficava fora da cidade e do alcance de olhares curiosos. O prefeito tinha, no mínimo, uma dívida para com ele.

Por três meses, perseguimos figuras do passado de Lucas, qualquer pessoa que pudesse ter razões para querer vê-lo morto. Não tinha inimigos ou dívidas, mas chegamos a alguns nomes, que iam de ex-namoradas a funcionários.

Fizemos rondas e abordagens e, quando parecia que finalmente havíamos encontrado um culpado, este era reprovado no último teste: Lucas encarava o suspeito e continuava ali. O saldo da busca foram seis pessoas inconscientes, um dos efeitos do processo. Uma experiência como aquela devia ser forte, já que o motivo desse tipo de ligação era.

Repassamos a história das amantes e possíveis conspirações políticas, mas sempre voltávamos ao mesmo ponto: a única pessoa que poderia relatar o crime estava morta, enterrada e com a memória bloqueada porque vira outra pessoa, antes de cerrar os olhos.

Resolvi apoiar Lucas na suspeita sobre o prefeito. Levei muito tempo até acordar em Alexandre novamente e aproveitaria o que tinha em mãos, para me livrar logo do fardo. Após uma breve ronda pelo centro da cidade, descobrimos que o homem presidiria a inauguração de uma nova unidade de combate ao câncer no bairro de Terra Baixa, no fim da manhã, e partimos.

Dias atrás, fiz um pequeno estoque de roupas no abrigo que visito quando acordo na cidade. Intimamente, agradeci pelas pessoas que empinam o nariz para certas doações. E os tênis que Lucas fizera cair da varanda de um prédio, no centro – acidentalmente, segundo ele – ajudaram na hora de correr.

Já havia muita gente em Terra Baixa, quando chegamos, mas nem sinal do prefeito. Pelo que pude captar das conversas, ele participaria da inauguração e partiria para a capital, levando algum tipo de proposta ao Congresso. O problema ali era o número de testemunhas. Sempre por perto, Lucas também observava. A multidão aumentava e ele não se sentiu confortável naquele meio, porque identificou alguns espectros desagradáveis. Decidimos esperar pelo prefeito na estrada. Corri novamente, tentando não chamar atenção.

Lá, entre os arbustos, observamos a estrada durante a tarde. Só havia uma saída para o aeroporto e ali, eu ficaria bem escondida. Montamos um plano, que tinha furos enormes, mas era o melhor que tínhamos e eu estava disposta a ajudar como fosse.

Muitos carros passaram antes do importado amarelo, mas ele finalmente veio. Fiquei de pé e sorri para Lucas.

_Nunca?

_Agora. Foi bom trabalhar com você, Ana. Quem sabe, um dia?

_Um dia, Lucas.

Ele sorriu de um jeito assustador, desfigurado. Não sei dizer o que ele estava sentindo ou mesmo se poderia sentir algo. Parte de mim não queria que aquilo acabasse. Quem se importa com chegar, quando o caminho até lá foi, se não divertido, memorável?

Ciente do fracasso a caminho, saltei para a estrada. Os pneus cantaram, a certa distância e fechei os olhos. Ouvi quando o motorista bateu a porta do carro com força e veio na minha direção.

_Tente chegar nele, agora – sussurrei para Lucas, que só podia aproximar-se dos suspeitos se eu estivesse por perto. Com uma pirueta, fingi um desmaio. O que os anos na rua não ensinam, a gente inventa.

Ouvi outra porta do carro abrindo. Não movi um músculo, sabendo o que viria a seguir. Antes de perderem os sentidos, as pessoas testadas por um espectro costumam engulhar. Ouvi três engulhos e um baque, provavelmente o do motorista, quando apagou fora do carro.

_Eles não matariam uma vaca – a voz de Lucas me surpreendeu entre as pálpebras, segundos depois.

_Uma mosca.

_Nenhum dos dois.

Em uma conferência rápida, contabilizei três inconscientes e um espectro ainda ali, o que não era surpresa. Com sorte, eles acordariam em poucos minutos, vagamente cientes do ocorrido e de uma maluca que desmaiara pela mesma razão misteriosa. Tão rápido quanto viemos, enveredamos de volta à cidade por entre as árvores.

Voltei para o abrigo, naquela noite, o que evitava, porque é tipo de coisa você não encara enquanto pode escapar. Mas era bom parar de perseguir gente inocente e me esconder de todo o resto, de vez em quando. Revigorante.

De alguma forma, enquanto observava as infiltrações nas paredes e os colchonetes ocupados pelos demais desabrigados, consegui sentir-me em casa, quase sozinha e feliz. Lucas continuava ali.

_ Que bom que deu tudo errado, de novo – sussurrei. Se as coisas fossem menos complicadas e eu tivesse um lar de verdade, seria uma chatice.

_ Quem disse que a vida é fácil? Se fosse, não estaríamos aqui, para consertar as coisas.

Ele se recostou ali, ao meu lado.

_ Tecnicamente, você não está aqui, Lucas – desabei sobre o meu colchonete e puxei uma coberta. Estava realmente cansada.

_ Vou estar, quando acordar amanhã.

_ Sei o que quer dizer.

Fechei os olhos sorrindo, tentando afastar da mente todas as lembranças, inclusive a da primeira-dama apressada, deixando A Taberna pela porta dos fundos, naquela manhã de terça, sete meses atrás.



***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.
A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

COMENTÁRIOS ANTERIORES

- Elton disse...Mais uma obra prima dessa ilustre autora ... que dentro em breve será conhecida internacionalmente por seus contos, historias e cronicas. Aguardo que vc escreva a continuação deste texto. bjos 7 de setembro de 2010 13:10 
 
- Guto Fernandes disse...Adoreiii seu conto. Infelizmente ainda só li o primeiro mas a historia me envolveu mtoooo... Amanha já tenho minha leitura para antes de começar a escrever CPdM ou O Sétimo Dia...Parabéns, minha querida amiga! Só uma duvida: aquela parte da testemunha me explique o porque depois?? Please >< rsrs 14 de dezembro de 2010 23:22

THIS GOMEZ disse: Lucas foi morto dentro de seu bar, o "Taberna". Do lado de fora, Ana acordou justamente naquela hora e espiou pela janela quando viu a Primeira Dama saindo apressada do lugar. Pela janela, Ana presenciou os últimos segundos de vida de Lucas e o espectro dele ficou "preso" a ela, porque foi a última pessoa que seus olhos captaram, antes de morrer. Criei esta lenda, propondo que alguns assassinos, estando encarcerados ou não, sofrem consequências inexplicáveis por terem tirado a vida de alguém. Alguns enlouquecem. Outros podem até tentar viver como se nada tivesse acontecido. Mas nenhum deles realmente esquece do que fez. O espectro se prende à última pessoa que realmente VIU e a atormenta até que pague pelo que fez. Mas pode acontecer de ela ver outra pessoa, como foi o caso de Ana e sua pouca sorte.
- Rafael Sales disse... This que conto maravilhoso!!! A lenda de um espectro se "ligar" a última pessoa que ele vê antes de partir simplesmente é fantástica. Parabéns pelo seu trabalho e criatividade. Te desejo o melhor e espero muito ver Ar de Evasão não só nesse blog. Quero ele (completo)publicado e quem sabe até adaptado para virar filme XD.Um grande beijo 13 de janeiro de 2011 20:51
 
- Beronique disse... Adorei esse conto, é muito inusitado e surpreendente, tem uma aura ativa e ligeira, esse final em que ela confessa ter visto a pessoa que saiu da taberna apos a morte de Lucas, mas não revela (acredito) por não querer ficar sozinha em sua vida que é tão estranha qto a dele, hmmm, tem um ar (mesmo que insolito) de romance. Mto bom! 10 de fevereiro de 2011 21:21

Um Mundo Paralelo

Bom dia, pessoas.

Decidi criar este espaço para concentrar as minhas produções em contos e poesia - o material extra que eu criei para avaliação em antologias - uma quantidade de textos, já que, geralmente, tenho ideias múltiplas acerca de um tema. Possivelmente, haverá em um futuro próximo algumas pinceladas do meu primeiro projeto literário, no qual trabalho há um ano.

O meu blog literário, que agora se chama Pilha Flutuante, continua vivo e bem mais forte do que em seu início, quando tive de aprender tanta coisa por conta própria, errando e tentando de novo. E daqui, vocês poderão ser redirecionados a ele. Agradeço desde já a todos os que estão marcando presença na minha vida e no meu trabalho, no sonho que tenho desde a infância e que começo a realizar em breve.


OS CONTOS

Em primeiro lugar, a série de contos "Ar de Evasão", que se encerrou com a quinta parte! E é a minha versão do nonsense, rs.

OS POEMAS

Repassarei para vocês os poemas que tiveram melhor resposta do público, em visualizações e comentários.



Fiquem todos com Deus e cuidem-se, meus queridos.