sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

[CONTO] Babélico (Ar de Evasão IV)

_ Você não bateu forte demais?

_ Ela vai sobreviver.

_ Eu estava pensando: a gente pode chamar a TV.

Pancadas ribombavam no teto.

_ E perder essa chance? Quando as pessoas souberem, vão jogar essa aí no zoológico.

As pancadas ficaram mais fortes e rápidas.

_ Pode ser coisa ruim, Marcão.

_ E daí? Se ela consegue entrar e sair de qualquer lugar, eu quero...

O som de um trovão abafou o fim da conversa.

Dezembro ia avançado, mas fazia frio.

Os sons de vozes masculinas e da chuva no telhado misturavam-se harmoniosamente a caminho dos ouvidos de Ana, que acabara de acordar, mas não abrira os olhos. Seu corpo estava pesado, sentia os pulsos e tornozelos doloridos, e algo pressionava os seus lábios.

_ Não abra os olhos e não se mova – ouviu a voz de Lucas em algum ponto acima de sua cabeça.

Ouvindo o retinir de metais à sua esquerda, porém, Ana não resistiu e afastou as pálpebras inchadas. Aos poucos, os contornos anuviados de duas figuras entraram em foco: os homens usavam jalecos verdes e não pareciam preocupados em esconder os rostos, de traços familiares. De onde os conhecia?

Ana só conseguia mexer a cabeça para os lados. Estava em uma sala cinzenta, pequena e aziaga. Ali, havia apenas a superfície plana onde a deitaram, uma janelinha de metal cuja altura jamais alcançaria, e uma longa estante cinza, com gavetas rotuladas a perder de vista. Vislumbrou a cabeça de um cadáver sobre uma das gavetas que estava sendo fechada; isso explicava o som metálico. Não parecia o lugar ideal para receber amigos.

As lembranças voltaram com o vento. Sim, ela acordara mais cedo em algum lugar macio, debaixo de chuva, mas fora nocauteada por um daqueles dois, não sabia dizer qual. Não perdera totalmente os sentidos, mas as suas reações se resumiram a gemidos de dor, durante o tempo em que a carregaram até aquele lugar. Agora, estava plenamente desperta e começou a debater-se sobre a maca, urrando.

_ Acordou – o homem ruivo forçou a mandíbula de Ana para baixo e o trapo sujo que cobria a sua boca encaixou-se nela. O moreno baixo aproximou-se pelo outro lado e aplicou um líquido transparente na veia da garota: em alguns segundos, as imagens começaram a ficar borradas e confusas, fazendo-a sentir como se o tempo tivesse desacelerado. Só então, o ruivo desatou a mordaça.

_ Agora você vai explicar como fez aquilo – o moreno começou.

_ Quê? – ela balbuciou, virando a cabeça para o lado direito.

_ Flutuar e depois cair no chão.

“Lucas, o que ainda estou fazendo aqui?”, ela pensou, mirando o amigo, que se postara entre os dois homens, à cabeceira da maca.

_ Ah, agora você me escuta. Quero saber o que eles querem de você e depois saímos.

“Eles vão me machucar?”

_ Não se atenha a bobagens, Ana! Vejamos o que querem; siga o plano parlamentar.

_ Ah – ela balbuciou, lembrando que haviam combinado algumas palavras-chave, para o caso de reações de urgência; o plano parlamentar pressupunha agir como um político comum. Ana tornou a olhar para o moreno – Não sei do que está falando.

_ Eu esperei com Luís do lado de fora do bar, pra dar uma surra naquele pateta grandalhão. E de repente, você estava lá, do nosso lado. Caindo do ar!

_ E?

_ A gente vigiava o lugar desde ontem. Vi você entrar lá com ele, mas não sair. Esse aqui não me deixa mentir – o moreno apontou para Luís – Eu diria que o seu segredo está seguro comigo, mas – ele sorriu, exibindo dentes amarelados – essa frase já tem muitos donos e a gente pode usar você pra algo melhor.

Ele lançou um olhar malicioso ao comparsa e depois tornou a observá-la, aproximando seu rosto do dela, de modo que ficaram a poucos centímetros de distância. Ela tornou a virar a cabeça para o lado, mas ele a puxou de volta pelo queixo com a mão rechonchuda, que tinha um cheiro verde, o aroma de alguma erva.

_ Como fez aquilo? – tornou a perguntar, cuspindo as palavras.

“Lucas, por favor?”

Enquanto ela tentava forçar a cabeça para cima, o amigo já se postava diante do ruivo, que engulhou baixo e perdeu os sentidos.

Ana esperava a ação de Lucas, observando furiosa o rosto do moreno, rente ao seu, quando sentiu ondas de calor desprenderem-se de sua face e percebeu as imagens, antes borradas, entrarem em foco. Inexpressivo, mas sem desviar o olhar da garota, o moreno começou a engulhar e desabou ao lado da maca.

_ Mas o que é que foi isso? – Lucas pareceu surpreso, especialmente com a tranquilidade com que Ana encarou a situação.

_ Sei lá, só me tira daqui.

Em movimentos curtos e rápidos, Lucas desatou as amarras das mãos e dos pés de Ana, que desceu da maca trocando os pés descalços. Ainda com o vestido que usara no casamento de Pierre, ela deixou a saleta guiada pelo amigo. Saíram no corredor mal iluminado de um hospital, onde havia macas de aspecto envelhecido dos dois lados, por toda a extensão.

_ Que lugar medonho... Lembra o meu Taberna, quando começamos a construí-lo. Bons tempos! - Lucas verificou.

Caminhavam em direção à curva no final do corredor, quando um enfermeiro surgiu de lá: vinha de cabeça baixa, folheando o bloco de uma prancheta. Ana começava a erguer uma mão para chamá-lo quando Lucas usou o vento novamente para empurrá-la na direção de um quarto escuro à direita, contra a porta entreaberta. Ela deslizou pelo chão até parar aos pés de uma estante de metal.

_ Vocês precisam parar de me jogar contra coisas. Paredes – ela olhou para trás, esfregando a parte de trás da cabeça com uma mão – paredes de ferro...

Lucas mal percebera que aquele quartinho era o almoxarifado, a voz de uma mulher cruzou a penumbra.

_ Olá?

Uma jovem enfermeira, de rosto afogueado, apareceu arrumando os cabelos. Um rapaz de jaleco branco surgiu das sombras atrás dela, igualmente ruborizado.

_ Ouviu algo?

Sem esconder o sorriso, Lucas fez sinal para Ana permanecer em silêncio e atravessou o cômodo até a última estante. O espectro soprou algo no campo de audição dos dois funcionários e ambos deixaram o local trotando, benzendo-se ao alcançar a porta, que trancaram com um puxão. Lucas fez uma cadeira ir deslizando até a maçaneta e escorou-a por baixo.

_ Fica aí, Ana – ele se afastou e começou a fuçar entre as estantes. Não demorou muito e estava de volta, deslizando um uniforme pelo piso empoeirado até os pés da garota.

_ Vista-se para sairmos daqui.

_ Ou eu posso ir até a direção do hospital e dizer que eles têm dois empregados pilantras, que torturam pessoas naquela sala cheia de gente morta.

_ Primeiro: você não vai querer contar a sua história. Segundo, preciso tirá-la daqui.

_ Este é o melhor lugar para estar se o que eles me deram for perigoso – ela bateu de leve no antebraço – Aliás, onde você estava quando me prenderam?

_ Não posso dizer que entendo o que acontece. Quando dorme, você desaparece das minhas vistas.

_ O quê? E nunca achou isso estranho?

_ Não tanto quanto duas pessoas de planos diferentes se comunicarem! Eu só consigo vê-la quando está consciente, ponto.

_ Mas não deu a mínima quando o seu irmãozinho brutamontes me arrastou daquela igreja, no meio da tarde!

_ Porque você apagou em algum lugar. Bêbada, eu suponho.

Ana fulminou-o com um olhar.

_ Troque logo estas roupas e vamos embora, menina.

_ Vira pra lá.

_ Não há nada aí que eu já não tenha visto.

_ Como assim?

A discussão provavelmente continuaria, não fossem as fortes passadas no corredor que só não eram mais audíveis do que o ruído da chuva fustigando as janelas e o som das buzinas vindo da rua.

_ Vem alguém aí. Silêncio.

 Lucas cruzou a porta e verificou que o ruivo, Luís, não apenas já estava de pé, como disparava pelo piso branco. Não conseguiria entrar ali a não ser que derrubasse a porta, mas ainda havia a possibilidade.

_ Parece que você derrubou um, Ana.

Para poupar tempo, Lucas fez os trajes de enfermagem entrarem em Ana de qualquer jeito e amassou a máscara em seu rosto. Ela só precisou puxar a liga para trás da cabeça.

_ Você imaginou que fosse tão fácil conseguir um uniforme de hospital? - ela sorriu.

_ Quem tentaria algo assim? – Lucas bufou. Era uma pergunta retórica, mas Ana abria a boca para responder quando ele a interrompeu – Vamos.

Assim que o homem sumiu na curva, ele abriu a porta e instigou Ana a correr. Aquele piso estava claramente em fase de reforma suspensa. As duas janelas, uma no início e outra no fim do corredor, estavam cobertas por lonas, impedindo que a chuva entrasse; havia cavaletes e latas pelo chão, e um buraco no teto deixava à mostra alguns fios mortos do sistema de iluminação.

Ana se demorou mais longamente observando a fiação, mas baixou os olhos em tempo de ver alguém atrás do último cavalete, próximo à janela do fim do corredor, a única fonte de luz agora. Ela recortava a figura de uma mulher, com um vestido que ia até os joelhos; o vulto estava coberto por sombras e parecia observá-los. Quando Ana estreitou os olhos para enxergar melhor, Lucas a empurrou na direção do corredor à esquerda, oposto ao que vira os dois homens seguirem.

_  Eu já estive aqui.

_ Claro que esteve. Circulando, Ana!

_ Eu já estive aqui, sim! É o hospital central de Alexandre. Estou em casa de novo.

Ela disparou sozinha pelas escadas, à direita. Desceu determinada os dois lances seguintes e enveredou por outro corredor. Sabia onde queria chegar e quem estaria ali, à sua espera, e apressou seus passos.

As paredes cinzentas adquiriam um tom esverdeado à medida em que Ana avançava; sombras de médicos, enfermeiros e pacientes transitando e conversando no corredor, em um dia normal no hospital, emergiram em sua mente, acompanhando a sua corrida. As vozes deles soavam distantes, mas eram familiares, como se ela tivesse encontrado conterrâneos em um país estrangeiro.

Contou mentalmente os quartos por que passava, tocando os portais por breves segundos, até dar um encontrão em alguém e cair sentada no piso frio. Era o ruivo, Luís.

O homem agarrou Ana pelo braço e puxou-a para si. Segurou-a pela cintura com um dos braços e prendeu a boca dela com a mão livre. A garota sacudia pernas e braços no ar enquanto era arrastada para trás, na direção do andar superior. Ele era mais forte do que parecia.

Lucas olhou ao redor, mas não havia um só objeto, no corredor daquele piso, que pudesse atirar contra o ruivo. Aproximou-se e mirou os olhos de Luís, mas nada aconteceu.

_ Opa.

“Que foi?”, Ana pensou.

_ Parece que só funciona uma vez. Esta é com você, menina.

“Mas eu não posso fazer o mesmo!”

_ Pode, sim! Tanto que fez, há pouco. Tente de novo!

Ela se contorceu como pôde, mas o homem a segurava com muita força. A alternativa era forçar a boca o suficiente para abri-la, e foi assim que conseguiu morder a mão do ruivo com ferocidade. Nos breves instantes em que ele a soltou, berrando de dor, Ana fincou as unhas no braço que a retinha pela cintura, virou-se e agarrou o rosto sardento de Luís entre as mãos úmidas. Não foi preciso muito esforço para sentir as ondas de calor sendo liberadas de seu corpo. Em segundos, Luís havia apagado.

_ Homem no chão!

Lucas bateu palmas e brincou com a ideia de Ana dar um espectro melhor do que ele, enquanto ela tornava a correr na direção dos quartos. A chuva ainda fustigava as paredes externas e o som de buzinas vindo da rua aumentara.

Enfim, alcançou a penúltima porta antes da próxima escadaria. Entrou, seguindo pelo caminho que bem conhecia. Observou cautelosa cada leito por que passava, mas continuou decidida até o último, logo abaixo da janela alta de ferro. E encontrou-o vazio.

_ Todo esse suspense para isto? – Lucas comentou sarcástico, ao que ela respondeu com um aceno negativo de cabeça e logo retrocedeu em direção ao corredor, seguindo escadaria abaixo. Não encontraram vivalma por onde passaram. No térreo, porém, a situação não poderia ser mais diferente.

Reinava uma algazarra sem precedentes no primeiro piso.

A água barrenta da chuva, tendo tomado conta das ruas, invadia a recepção. Pela porta viam-se pessoas abrigadas sobre um telhado, do outro lado da rua, ou tentando salvar pertences, atravessando a enchente. Ana sentia o cheiro acre dos resíduos da saída de água sob a ponte Larousse, misturados à enxurrada.

A cheia alcançava os joelhos de enfermeiros que se chocavam empurrando macas, carregando crianças ou apoiando idosos na direção do primeiro andar. Uma gestante de cabelos longos e úmidos, que lhe empastavam o rosto, subia os degraus com a ajuda do enfermeiro da prancheta, que viram no andar do necrotério.

Algumas pessoas ainda estavam em choque, outras berravam sobre a rapidez com que a água dominara o lugar, enquanto mais gente vinha da rua, pedindo ajuda, ou simplesmente, passando às pressas pela escadaria na direção do primeiro andar.

Uma dessas pessoas deu um encontrão em Ana, fazendo-a bater de costas contra o corrimão da escada. Apática, ela desceu até o piso, mesmo que a água continuasse subindo e já alcançasse o seu quadril.

_ Era para estar aqui.

_ E está, filha.

Em meio à balbúrdia, uma voz feminina rascante alcançou os ouvidos de Ana e sobrepujou a desordem. A garota não se virou: já esperava que a senhora de vestido longo aparecesse ali.

_ Onde ele está?

_ Adiante. Veja.

E ela o viu.

O menino de olhos cor de mel estava parado perto da porta, encharcado, observando-a de volta, alheio à movimentação das outras pessoas, com seus olhos e traços tão familiares. A lembrança de onde Ana o conhecia veio em forma de onda. Ela sussurrou algo antes de seus joelhos cederem, mas não foi ouvida.

Ana desapareceu sob a água turva.



***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

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