sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

[CONTO] Dulçoroso (Ar de Evasão III)


Início de novembro. Ana sentiu o bafejar quente da criatura em seu pescoço, mas não abriu os olhos.

‘Deve ser um desses cães perdidos, que fuçam tudo o que encontram’, pensou, enquanto sacudia um braço para afastar o animal. Ouviu o gotejar da chuva que batia nas calhas ao redor e deduziu, com satisfação, que acordara em terra firme mais uma vez.

O bafejar se transformou em uma risadinha e dois cutucões, logo abaixo de sua orelha esquerda, seguidos por um forte puxão sob seus cabelos. Considerando o último semestre, Ana não poderia dar-se o luxo de duvidar do que existe entre o céu e a terra, muito menos nesse momento, quando era presa fácil para um possível inimigo.

Abriu os olhos inchados e encontrou, mirando-a de volta, dois olhos cor de mel, tão próximos que pareciam tentar radiografar a sua alma. Assustada, a garota empurrou a criatura e se arrastou de costas, tomando distância. Levou uma mão automaticamente ao peito, onde estava o velho medalhão emperrado da sua família. Era  uma peça média, de ouro velho, com um cordão grosso - o único bem que a ligava ao seu passado obscuro, às suas raízes misteriosas. E não pretendia perdê-lo, não importa o que tivesse de fazer.

Não era um animal, enfim,em todo caso, mas um menino de cinco ou seis anos, a julgar pela altura.

O que chamou a atenção de Ana foram os traços familiares no rosto e os olhos dele. Isto, e a bolsa improvisada da garota, neste momento balançando nas mãos do pequeno. A sacola continha alguns pertences, uma faca de cozinha e uma banana madura, que serviria de café. Decidiu não espantá-lo e perguntar o que queria com as coisas dela.

Esboçava um rouco “De onde conheço você?” quando o garoto abriu um largo sorriso e se lançou na direção da rua. Usava um terninho preto e Ana esfregou bem os olhos, para confirmar que estava acordada. De fato, havia um terno minúsculo atravessando a rua apressado, chacoalhando uma pequena cabeça no topo e uma sacola na mão direita.

Ela tomou apenas os segundos de que precisava para perceber que acordara, desta vez, entre os brinquedos de um playground, nos fundos de uma casa antiga, em uma cidade qualquer.

_ Lucas, você viu aquilo? Lucas?

O espectro não estava por perto, mas Ana decidiu não esperar: pôs-se atrás do menino, que já atravessara a rua e passava por um beco gramado entre duas casas.

Com o preparo físico que as perseguições e fugas ofereciam como recompensa, Ana imaginou que poderia inscrever-se para a próxima maratona de Alexandre. Ficar em uma boa colocação era moleza e qualquer prêmio compensaria a corrida. O verdadeiro desafio seria acordar na cidade no dia da prova.

Seu estômago começou a reagir ao amanhecer, mas ela não podia perder o menino de vista. Ignorou os reclames de seu corpo e continuou, agora desejando a fruta mais do que antes. Encontrou o pequeno parado, do lado de fora de uma capela, dez metros adiante, do outro lado da rua. Ele entrou no prédio, um sorriso travesso ainda brincando em seu rosto, e ela o seguiu.

Ao entrar, vasculhou o local rapidamente, mas a capelinha estava vazia. Ofegante e de cenho franzido, ela se sentou em um dos bancos lustrosos, fechou os olhos e deitou a cabeça sobre as mãos, no encosto do banco dianteiro. Ao reabrir os olhos, encontrou a sua bolsa ali ao lado, sobre o banco, da forma como sempre a deixava, ao parar em algum lugar: como um rolinho preso pelas abas.

Imaginou se a criança fora um delírio causado pela abstinência. Não fosse a única fruta da bolsa, que ela tratou de devorar antes que acontecesse qualquer outra coisa, aquele seria o segundo dia sem uma refeição de verdade, o que significava: nada cozido, quente ou com o melhor gosto do mundo. Deveria ter esfregado os olhos com mais força, ainda no playground. Agora, as suas pernas estavam trêmulas demais para ficar de pé. Adeus, maratona.

Ana passou algum tempo observando o altar e as colunas enfeitadas com flores brancas. Imaginou se devia fazer uma das orações que aprendera na infância, já que estava ali, mas lembrava-se tão claramente delas quanto das feições de seus parentes. Ela não sabia dizer se já entrara em uma igreja, antes. Em todo caso, duvidava de que conseguiria raciocinar enquanto não se alimentasse de verdade. Levantou decidida, fez algumas voltas com as abas da bolsa no punho e caminhou até a porta.

Lucas surgiu rente ao portal, mas o susto que Ana engoliu não conseguiu interromper a sua marcha. Ela atravessou o amigo e a sensação foi a mesma de um desfalecimento. Catou cavaco até cair esparramada, no piso de pedra da beira da escada.

_Por que só apareceu agora? – perguntou, enquanto apoiava-se no piso, para ficar de pé. Seu queixo tremia muito.

_Não sei. Como conseguiu acordar em uma capela?

_Não acordei aqui.

_Não importa, meu bem, é melhor sair daqui rápido, os convidados estão chegando.

_Do que você me chamou, Lucas? - Ana sentiu um embrulho esquisito na barriga; algo se contornia ali dentro, usando garras e tentando sair à força.

_Venha – Ele a puxou pelo braço, utilizando o vento da forma como aprendera, no início da primavera.

Inúmeros carros faziam fila de um lado da calçada e pessoas elegantemente vestidas se dirigiam à porta da capela que, vista de fora, era bem maior do que parecera há pouco. Lucas indicou um dos lados da igreja e Ana o seguiu.

_Tenho algo para você, enquanto o noivo se acomoda na sacristia – ele apontou para um pequeno pacote disforme, largado sobre a grama.

_O noivo é cego? – ela se surpreendeu ao ver o rapaz que chegava, com uma flor na lapela e uma venda cobrindo os olhos. Ele era guiado até a igreja por outro homem, que também usava roupas de domingo e o ajudava a subir os degraus.

_Você não acreditaria nessa história. Aliás, mocinha, já pedi para você substituir estes termos chulos. “Cego”? O que tem aprendido comigo, nas aulas?

Lucas resolvera que, nos longos momentos sem suspeitos a seguir ou esperando que os mesmos fizessem alguma besteira, ele daria aulas de idiomas e de conhecimentos gerais a Ana. Ela poderia compensar uma parte dos ensinamentos escolares que vinha perdendo, desde que a sua anomalia se tornou um impasse aos estudos.

_Em todo caso, creio que gostará de presenciar este casamento. Vamos, abra o pacote! – Lucas bateu palmas, sorrindo. Ana não reagiu com o mesmo entusiasmo, até descobrir o que embrulho trazia: no topo, havia um saco de papel contendo um pão e uma variedade de frutas fresquinhas e limpas.

Ela não contou o tempo de admirar as maçãs e começou a devorá-las uma a uma. Só quando parou para respirar, percebeu o que viera no fundo do pacote: um vestido de estampa florida em rosa, amarelo e verde, mais um par de sapatos amarelo claro, sem salto. Não perguntou qual era a procedência de tudo aquilo, porque, sempre que o amigo aparecia com novos objetos, dizia que vinham de ‘felizes acasos de infelizes’.

Ana esfregou os olhos com bastante força, dessa vez.

_Eu vou entrar? – mirou o amigo com olhos satisfeitos – Por quê?

_Porque eu vou e você vai comigo.

Ela preferiu não discutir.

Ana tinha algum trabalho a fazer com os detalhes que Lucas não conseguira arranjar, o que era, basicamente, todo o resto. Mas ele a encorajou, dizendo que provavelmente causaria espasmos de inveja nas convidadas, quando vissem a pele perfeita do seu rosto.

O banho rápido, em uma fonte ali perto, foi a parte fácil. O cabelo é que a tirou do sério: ela inventou uma série de nós com os fios grossos, mas todos faziam a sua cabeça parecer um ninho de joão-de-barro. Lucas sumiu por instantes e quando Ana ouviu a voz dele novamente, esta vinha da direção da fonte.

_Aqui, corte fiapos com aquela faca – ele apontou para um cipó verde escuro rígido, à beira da fonte, onde o terreno era alagado – Isto é junco. Vai segurar firme o seu cabelo e fazê-lo parecer bonito – continuou, enquanto ela sacava a faca de cozinha.

_Eu ouvi dizer que junco leva uma semana para secar.

_Deixe os detalhes para a minha pessoa, Ana.

Este era o dia mais diferente de que a garota se lembrava, especialmente pelo fato de que havia pequenas rajadas de vento trançando o seu cabelo com fiapos verdes de junco, à beira de uma fonte, em terras desconhecidas.

Lucas e a sua acompanhante conseguiram entrar na igreja antes da noiva, o que não era uma vitória maior do que ver as senhoras por quem passavam virando as cabeças na direção de Ana.

_Eu não disse que você causaria passamentos? – Ele sorria e acenava para todos, ainda que não pudessem vê-lo. Ana, que não sabia onde pôr as mãos, murmurava que não deveriam estar ali sem convite.

_Vamos! O pior que pode acontecer é a noiva confundir você com o buquê!

Ela bufou, mas sorriu.

A noiva chegou com quarenta minutos de atraso, segundo o que Ana conseguiu captar das conversas entre os convidados sentados mais perto dela. Ela se sentara na extremidade de um dos bancos, com Lucas de pé, ao seu lado.

Durante toda a cerimônia, ela observou, o noivo permaneceu com a venda sobre os olhos e só começou a desamarrá-la quando o padre lhe ordenou que beijasse a noiva.

‘Qual é o mistério do lenço?’, Ana pensou, lançando um olhar a Lucas, sabendo que ele podia ouvir o que se passava em sua mente.

_Digamos que ele redefiniu a tradição sobre não ver a noiva antes do casamento – Lucas posicionou as duas mãos na própria cintura, orgulhoso.

‘É brincadeira?’

_Não, é o meu pupilo.

Ana observou incrédula enquanto o rosto de Pierre emergia do lenço azul.

A recepção aconteceu no pátio atrás da igreja e, a despeito dos atalhos que utilizaram para entrar sem convite, Ana desejava fugir dali o mais rápido possível, antes que o noivo a encontrasse e resolvesse terminar o que começou no bar, meses atrás.

_Ofereço-lhe a chance de ver um casamento razoavelmente interessante, entrar sem convite em uma festa belíssima, repleta de comida, e você me aparece com essa expressão de “minha carroça virou no rio”? O que há de errado com você?

_Primeiro: o casamento foi muito bonito. O que me preocupa é estar inteira, no café de amanhã.

_Ele não vai reconhecer você, mesmo.

_Como pode ter tanta certeza? – ela sentiu um forte puxão na barra de seu vestido. Virou-se em tempo de ver o mesmo menino que fugira com a sua bolsa, pela manhã. Ele tornou a correr na direção da capela.

Ana desligou qualquer defesa e nem se importou em chamar Lucas desta vez, porque pegaria aquele baixinho de jeito, agora. Ela sorriu indulgentemente para alguns convidados e, uma vez que estava fora das vistas de todos, correu na direção do garoto.

Ainda correndo, o menino entrou na igreja e ela seguiu seus passos, desta vez atenta a qualquer movimentação sob os bancos e na direção do altar, para onde se encaminhou apressada.

_Está fugindo de quê? Pode cutucar e roubar, mas não encarar, é? Cadê você, pivete?

Ana bufou e passou as mãos, nervosamente, pelos cabelos, que começavam a se soltar da longa trança. Procurou embaixo das cadeiras, do altar e, nada encontrando, dirigiu-se à sacristia. Fez um giro completo para a entrada, ao ouvir um pequeno ruído, mas o garoto não estava lá.

Dera apenas três passos na direção da porta, esfregando as mãos contra o rosto, quando sentiu seu corpo ser puxado contra o de alguém, em uma chave de braço.

_Eu não sei como entrou aqui, mas quero saber o que pretende.

Era a voz de Pierre.

_Logo hoje! Qual é o seu problema? E não venha com a história da fome, de novo, que não desce.

_Lucas – ela sussurrou, chamando pelo amigo.

_Também não caio nessa. Aliás, quem me garante que você não tem algo a ver com a morte do meu patrão?

Ele liberou o pescoço de Ana, mas pressionou sua mão contra a boca da garota. De um bolso interno do paletó, puxou o mesmo lenço azul que usara durante a cerimônia e, sem desviar o olhar do rosto da moça, utilizou-o para amarrar os pulsos dela um ao outro.

Arrastou-a, pelos fundos da sacristia, na direção de um carro, que estava estacionado na lateral da capela, onde não havia convidados à vista. Depois de acenar para um homem de terno, que observava a cena da porta da sacristia, Pierre jogou Ana de qualquer jeito no banco do carona.

Alcatão era cidade irmã de Alexandre, mas Ana nunca a visitara antes, nem em evasões. Perguntava-se onde Lucas estaria e se a ligação entre eles lhe permitiria encontrá-la em qualquer lugar. Fazia vinte minutos que ela não considerava a possibilidade. Talvez ele precisasse conversar com outros espectros.

Pierre estacionou do lado do bar e fez a volta. Ana tentou escapar, mas não teve sucesso. O dono do bar guiou a garota pela porta dos fundos, que estava destrancada, mas não ficaram na cozinha: ele a empurrou na direção do porão.

Ana engoliu em seco, aterrorizada pelo silêncio. Na ausência inexplicável de Lucas, preferiu ficar quieta e seguir as ordens. Enquanto descia as escadas, observou de relance os quadros pintados diretamente na parede e todos pareciam apenas uma parte da pintura bizarra do local, mas um deles reteve mais a sua atenção. A penúltima foto mostrava o menino de olhos cor de mel sorrindo, sentado em um balanço de parque.

Alcançaram a base e Ana foi empurrada novamente, desta vez, na direção da parede. Pierre trancou a porta e caminhou lentamente até postar-se cara a cara com a garota.

_Fala.

Ana lançou ao rapaz um olhar carrancudo, permaneceu em silêncio e se sentou no chão, de braços e pernas cruzadas.

_Não vou perguntar de novo.

Silêncio.

_Você sabe que esse lugar está todo gradeado, justamente por sua causa, certo? Não pode sair.

Ela deu de ombros.

Sem tirar os olhos da moça por mais do que breves segundos, Pierre foi até uma mesa coberta de ferramentas perto da porta e agarrou um punhado de cordas grossas e um martelo. Sem mais delongas, atou firmemente os pés de Ana e suspirou forte. Balançou o martelo a centímetros do rosto da garota por alguns instantes.

_Amanhã – ela respondeu olhando para o piso sujo, sabendo que só precisava dormir um pouco. Um sorriso brincou em seu rosto, que estava encoberto pelos cabelos claros, agora soltos.

Pierre se agachou para observá-la à altura dos olhos e virou a cabeça, com desdém, em resposta.

_O que me impede de quebrar os seus dentes bem agora?

_Na hora em que eu resolver falar, é bom que eu consiga falar, não é?

Ele baixou a cabeça, passou a mão livre pelos cabelos. Levantou-se decidido e atirou o martelo contra a parede, fazendo aparecer uma mossa no ponto onde a ferramenta bateu.

_Cinco horas – ele apontou um dedo ameaçador para a moça e saiu, batendo a porta e trancando-a por fora – você não vai fugir!

_Nem vou tentar.

Pierre voltou, às cinco da manhã, mas Ana estava certa: saiu dali de olhos fechados e antes mesmo de acordar.





***

*Originalmente postada no blog Canto e Conto, entre set/10 e mar/11.  A série "Ar de Evasão" surgiu da proposta de um Concurso de Contos, na linha do romance sobrenatural, para compor a Antologia "Beijos & Sangue". O conto raiz da série foi selecionado, em julho/2010, publicado no blog em setembro e a sequência veio a pedido dos leitores.

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